Publicada pela Folha de S. Paulo, a reportagem de Patrícia Pamplona
conta a história de Carlos Pereira, analista de sistemas que desenvolveu
um app voltado às pessoas com deficiência.
Graças ao conhecimento em programação, Pereira conseguiu desenvolver
instrumento que permitiu a sua filha Clara, com paralisia cerebral,
comunicar-se.
Mais do que isso, ele também busca a disseminação da
ferramenta para uso de pessoas com outros tipos de deficiência.
Confira o texto completo abaixo:
O analista de sistemas Carlos Pereira, 37, trabalhava com informática
até sua vida sofrer uma reviravolta.
A alegria do nascimento da filha
veio acompanhada de um desafio a mais: por causa de um erro médico
durante o parto, Clara veio ao mundo com paralisia cerebral.
A partir daí, o que poderia ser uma história triste virou superação.
“Quando a pessoa enfrenta o luto, uma grande perda, ela percorre alguns
passos. O primeiro é negação, depois raiva e termina com aceitação.
Passamos por essas fases também”, conta Pereira.
Além da casa adaptada, o pai foi atrás de tudo que
era possível para melhorar a qualidade de vida da filha. Chegou até a
abrir uma clínica de reabilitação no Recife (PE), onde mora, mas quis ir
alé para fazê-la se comunicar.
“Foi quando criei o Livox”, conta Pereira sobre o aplicativo para tablete criado por ele para ser “o melhor do mundo”.
O reconhecimento veio com prêmios do BID, da ONU e, mais
recentemente, ganhou quase R$ 2 milhões do Desafio de Impacto Social do
Google para pessoas com deficiência.
Carlos sabia que seu aplicativo teria tamanho efeito, somando 15 mil
usuários e 25 idiomas, desde que o criou, pois sua maior inspiração
estava dentro de casa.
“Essas pessoas com deficiência na fala são prisioneiras em seus próprios corpos. Às vezes, não conseguem andar, usar as mãos, mas entendem tudo que se passa ao seu redor.”
Como braço da empresa, há um ano o analista de sistema criou a
Inclusion Without Borders, para poder distribuir licenças do aplicativo e
tablets para pessoas que precisam, mas não têm como pagar pela
tecnologia.
Leia seu depoimento à Folha:
Trabalhava com informática para grandes empresas. No nascimento da
Clara, ocorreu um erro médico durante o parto e faltou oxigenação, o que
causou uma paralisia cerebral.
Saber do diagnóstico, realmente, não foi fácil. Nem sabia o que era paralisia cerebral antes da minha filha nascer.
Quando a pessoa enfrenta o luto, uma grande perda, ela percorre
alguns passos. O primeiro é negação, depois raiva e termina com
aceitação. Passamos por essas fases também.
Ela não anda e não fala, embora tenha a inteligência de uma criança da idade dela, de oito anos.
Depois do nascimento dela, a mudança foi radical. Mudou minha
profissão, minhas prioridades. A gente saiu fazendo de tudo para tentar
melhorar a qualidade dela.
Adaptamos o banheiro, compramos um carro em que coubesse uma cadeira
de rodas. Nosso cotidiano é totalmente adaptado para a realidade dela.
Em 2011, investidores estrangeiros entraram em contato comigo e
consegui trazer para o Recife uma clínica de reabilitação, com
fonoaudiólogos.
Um ano depois, vi que minha filha queria se comunicar. Falei que ia
fazer alguma coisa em relação a isso. Foi quando eu criei o Livox.
Quando estava desenvolvendo o aplicativo, falei que não ia fazer só
mais um software de comunicação alternativa, mas sim o melhor do mundo.
O que torna ele único são os algoritmos de inteligência que fazem o
aplicativo se ajustar de acordo com a deficiência da pessoa. Não importa
se é motora, cognitiva, visual, ele se adapta.
Antes, a Clara se comunicava por gestos, figuras. Eu imprimia algumas
coisas para ela apontar com a mão o que queria.
Na sala de aula, ficava
excluída. Simplesmente pelo fato de não se comunicar, as outras
crianças também não tinham interesse em interagir com ela.
Essas pessoas com deficiência na fala são prisioneiras em seus
próprios corpos. Às vezes, não conseguem andar, usar as mãos, mas
entendem tudo que se passa ao seu redor.
É muito complicado. Vejo isso diariamente com minha filha.
Infelizmente, a gente não conhece as necessidades das pessoas com
deficiência.
Tem muitos que olham para a Clara e se referem como ‘a
doida’, acham que tem uma deficiência mental e até falam isso perto
dela.
Hoje em dia, não quer dizer que não fique mais triste com isso, mas
tem que se andar para frente.
O Brasil tem uma legislação de primeiro
mundo para pessoas com deficiência, mas condições africanas.
Fui conversar com a diretora de um colégio sobre a lei de inclusão,
que já existia há muito tempo. Hoje em dia, não incluir pessoas com
deficiência em escola é crime.
A diretora falou que a lei era nova e expliquei que não, que já é
antiga, o que diferencia agora é que, se a pessoa com deficiência não
for incluída, isso é um crime. Ela disse que isso era uma palavra muito
forte. Mas não sou eu que estou falando, está na lei.
Foi quando ela me disse algo muito interessante: ‘Vamos ver se essa
lei vai pegar’. Respondi que lei não é gripe para pegar ou não. Lei se
cumpre.
Na minha opinião, o maior problema da realidade das pessoas com
deficiência no Brasil, além da questão de preconceito por falta de
educação, são essas leis que culturalmente não se respeita.
Mudanças
O impacto do Livox, no caso da minha filha, foi gigantesco. Ela
conseguiu se alfabetizar, interagir com os colegas na escola. Não tem
mais aquele conceito de coitadinha. Ela brinca, conversa.
A ferramenta ajudou as pessoas de fora a verem que minha filha tem
potencial, que ali mora uma pessoa. Hoje em dia meus pais, que já são
bem de idade, conversam com minha filha por meio do software, interagem
com ela.
As pessoas perguntam: ‘Você sabia que ia ter esse impacto todo na
vida dessas pessoas?’ Digo que sim, porque desde o começo eu via o
resultado na vida da minha filha.
Depois do Livox, descobri muita coisa sobre ela. Uma vez, estava
assistindo a um programa sobre dinossauros. Não achei que ela estava
prestando atenção, mas ela assistiu e sabia tudo, que estavam extintos.
Descobri as preferências de comida também. Soube que ela não gosta de mamão, mas gosta de hambúrguer.
Ela escreveu uma história publicada em um livro, com textos de
crianças de seis e sete anos.
Era uma tarefa da escola e ela também
tinha que escrever, mas como? Com o Livox, a Clara escreveu letra por
letra a história “A Boneca”. É curtinha, mas começa: ‘Eu sou a boneca
que sabe falar e escrever’.
A Clara gosta muito de brincar, como toda criança. Comprei uma bola e
um tipo de roupa que eu visto e amarro ela em mim. Cada passada que eu
dou, ela dá também. É legal porque ela fica em pé. Domingo de manhã,
fica louca, é a primeira coisa que quer fazer.
Quero continuar fazendo minha parte com relação à tecnologia. Estou
desenvolvendo uma nova, com a ajuda do Google. Isso vai fazer com que
ela se comunique de 10 a 20 vezes mais rápido.
O conceito de inclusão é fornecer condições iguais para pessoas
diferentes. É isso que vou fazer. Dar oportunidade para ela viver uma
vida mais significativa, para ela poder competir igual aos outros. Ela
já falou que quer ser veterinária.
Fonte: Folha de S. Paulo / Vida Mais Livre
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