Emma, Hillary, Ilka e Frontier integram um grupo seleto de cães que superaram um rigoroso "vestibular".
Entre 32 filhotes de labradores, eles formam a matilha de nove selecionados para dar liberdade, velocidade e autonomia a cegos do Projeto Cão-Guia Sesi-SP.
Em 16 de abril, trabalhadores da indústria ou seus parentes receberão oficialmente a companhia dos animais.
O projeto é uma novidade no Brasil, que tem apenas 60 cães-guia atualmente – a maior parte deles, importada.
Entretanto, antes dos nove "calouros", três outros cães treinados pelo Instituto Íris
já foram entregues a seus donos.
"Minha relação com ele é tudo. É um
filho, um pai. Eu preciso estar bem para ele estar bem", disse Rafael
Fortes Braz, de 32 anos, dono do golden retriever Ozzy, da primeira
"leva" do projeto.
Ozzy e mais quatro de seus colegas participaram, de um
passeio-teste pela Avenida Paulista na tarde de segunda-feira (14).
Os
novatos ficaram claramente animados ao rever os colegas de "vestibular" e
não se seguraram. O golden, veterano, já se mostra mais seguro. Brinca
quando o dono o libera, mas volta rapidamente para seu posto.
O sorriso que Braz exibe há um semestre ao lado de Ozzy passou a ser
rotina para o novo grupo há um mês. "Tudo é ainda novo para Hillary [uma
labradora]", explica a dona, Mellina Hernandes Reis, de 30 anos.
A adaptação é importante para esses cães, que precisam aprender alguns
hábitos e obedecer aos donos. Mas a fase de testes é importante também
para os humanos.
"Você tem que aprender a confiar totalmente no
cachorro. Com a bengala, você tem a sensibilidade do lugar, mas com o
cachorro ele faz isso por você. Muitas vezes, eu nem sei do que ela está
desviando", conta Gilberto Júnior, de 31 anos, dono da labradora Ilka.
A diferença incomparável entre a sensibilidade do cão e o apoio de uma
simples bengala é apontada por todos os novos beneficiados do projeto.
"Com a bengala, a gente precisa achar as coisas para desviar e tomar
decisões a partir daí. A Hillary já vê o obstáculo e calcula para onde
vai", diz Mellina. "Eles nos dão mais independência, mais autonomia",
completa.
E não é só isso. Segundo outros participantes do projeto, os cães
também garantem mais velocidade e são capazes de desviar de obstáculos
"aéreos", como orelhões e galhos de árvores, por exemplo. Braz conta,
orgulhoso, que consegue fazer em 20 minutos, com um cão bem treinado, um
percurso que normalmente faria em 1 hora com a bengala.
Além disso, a relação desse grupo de cegos com o espaço urbano mudou. E
a interação deles com as demais pessoas, também.
"Quando a gente anda
com a bengala, a pessoa se assusta, acha que somos coitados, tem gente
que tem preconceito. Mas, quando você está com o cachorro, muitas vezes
[as pessoas] nem percebem que eu tenho deficiência de visão, só acham
bonito o cachorro, acham bonito os dois passeando. Depois vão ver que
ele está com equipamento, vão entender que é um cão-guia e aí acham
bonito o trabalho", diz Braz.
Os cães-guia são companhia constante de seus donos. Por isso, têm
direito a entrar em todos os lugares aos quais o proprietário tem
direito, incluindo metrô, ônibus e espaços públicos.
Segundo os
participantes do projeto do Sesi, o acesso ao transporte na cidade tem
sido "tranquilo" neste primeiro mês. "Às vezes, vem um funcionário da
estação ajudar e acompanhar a gente até a entrada", conta Gilberto
Júnior. Para todos eles, São Paulo fica menos ameaçadora com a companhia
canina.
Preparo e treinamento
Não é fácil ser um cão-guia. Dos 32 filhotes entregues a diferentes
famílias para a etapa de socialização, apenas nove se formaram. Isso
porque eles tinham que ter certas características
– como docilidade,
obediência e controle em situações típicas do cotidiano de grandes
cidades como São Paulo, Santo André, São Bernardo do Campo e Mogi das
Cruzes, na Região Metropolitana, onde vivem os cegos atendidos pelo
projeto.
"Esses cães conseguiram fazer tudo o que precisa ser feito para levar
cada uma dessas pessoas em segurança para todos os destinos que elas
precisam", resume o treinador, Moisés Vieira Jr., do Instituto Íris.
No primeiro ano de vida, os labradores ficaram com famílias
voluntárias, que se comprometeram a socializar os animais nas mais
diversas situações.
Pela regra, os filhotes não podiam ficar sozinhos
por longos períodos de tempo e deveriam ser acostumados a andar no
transporte público.
Depois, os cães passaram por um treinamento que varia de seis a oito
meses. É com os adestradores do Instituto Íris que eles aprendem como
ajudar seus futuros donos a se locomover pela cidade.
Os filhotes que
passaram por todas essas fases partem, então, para a última: o convívio
de um mês com os deficientes visuais com quem vão viver.
A prova final é difícil de passar, e eliminatória: os animais precisam
ter uma personalidade que combine com a de seus futuros donos. Quando
questionada sobre o que fez de Hillary uma vencedora nesse difícil
processo seletivo, Mellina não tem dúvidas: "A Hillary é ansiosa como
eu, é apressada igual a mim", ri.
"A Ilka está comigo porque é muito ativa, precisa de alguém forte para
controlar essa aí", acrescenta Gilberto Júnior. Já Ricardo Pedroso não
tem dúvidas sobre o motivo que levou a labradora Emma a passar no
vestibular para ser sua cão-guia: "Ela é muito bonita, e o dono dela
também tem essa característica", brinca.
Os nove filhotes que passaram pelas três fases de treinamento agora vão
oficialmente passar a vida como os olhos de seus novos donos.
"Mudou a
minha vida, mudou tudo e para muito melhor. Não dá para falar que mudou
100% porque é muito mais, não dá para mensurar", afirma Braz, que não
esconde seu amor por Ozzy, que já é parte da família.
Aposentadoria
Os cães-guia não podem trabalhar em idade avançada. Depois de oito a
dez anos, chega a hora de eles se aposentarem.
"Esses animais estão 24
horas por dia com os donos, é uma relação que não tem igual, nem com
filho. Dono e cão nunca se distanciam", destaca o treinador Vieira Jr.
A decisão sobre o que fazer com o cachorro aposentado se torna
extremamente pessoal.
"Tem gente que decide voltar à bengala até o cão
morrer para só depois pegar outro. E alguns doam o cachorro idoso para
membros da família", conta.
A história costuma ter final bem feliz, segundo Vieira Jr. "Tem um
rapaz, por exemplo, que aposentou o cão dele e agora está treinando o
segundo. Nesse caso, o animal ficou com os pais dele, em um sítio. Está
lá curtindo a aposentadoria."
Foto: Marcelo Brandt/G1