Três em cada cinco ocorrências (62,1%) estavam no Sudeste e a
transmissão de gestantes para bebês é atualmente o principal problema.
A situação foi qualificada como "epidemia" somente agora, mas vem se desenvolvendo há mais tempo.
Em 2015, por exemplo, no país todo, foram notificados 65,878 casos. A
maioria desses ocorreu na região Sudeste (56,2%) e afetou pessoas na
faixa etária dos 20 aos 39 anos (55%), que se auto-declaram da raça
branca (40,1%).
Não há dados majoritários sobre o nível de escolaridade, pois em 36,8% dos casos reportados essa informação não foi preenchida.
Em 2010, a incidência da doença em homens era maior - cerca de 1,8 casos
para cada caso entre mulheres. Essa média caiu para 1,5 homem/mulher em
2015. Ou seja, as mulheres são o grupo cuja vulnerabilidade vem
aumentando.
Os casos de sífilis congênita, de transmissão da mãe grávida para o bebê, também cresceram expressivamente.
No ano passado, a cada 1000 bebês nascidos, 6,5 eram portadores de
sífilis. Somente cinco anos antes, em 2010, esse número era de 2,4 bebês
em cada mil nascimentos. Ou seja, a incidência da sífilis congênita
praticamente triplicou em meia década.
A BBC Brasil conversou por email com a médica colaboradora da
Organização Mundial de Saúde (OMS), Nemora Barcellos, para entender a
doença e a epidemia atual.
Leia abaixo os principais pontos da conversa:
BBC Brasil - O que é sífilis?
Nemora Barcellos - Sífilis
é uma doença infecciosa sistêmica, crônica. Ela se manifesta em
diferentes estágios. Sem tratamento, apresenta evolução em fases:
inicialmente com feridas na pele, pode evoluir para complicações que
levam ao óbito, podendo afetar o sistema cárdio-vascular e neurológico. A
causadora da doença é a Treponema pallidum,
uma bactéria espiralada altamente patogênica. A sífilis é uma infecção
muito antiga e recebeu inúmeras denominações ao longo dos séculos.
***
BBC Brasil - Quais são as formas de transmissão?
Dra Barcellos - A
principal forma de transmissão é o contato sexual. A gestante também,
por via hematogênica (pelo sangue), transmite para o feto a bactéria em
qualquer fase da gravidez ou em qualquer estágio da doença. A
transmissão via transfusão de sangue pode ocorrer, mas atualmente é
muito rara, em função do controle do sangue doado.
***
BBC Brasil - Quais as formas de prevenção?
Dra Barcellos - A
principal forma de prevenção é o uso de preservativos no ato sexual. O
tratamento correto e completo também é considerado uma forma eficaz de
controle, pois interrompe a cadeia de transmissão. O tratamento de ambos
os parceiros é muito importante na prevenção para impedir que ocorra a
re-infecção, garantindo que o ciclo seja interrompido.
Em relação à sífilis na gestante e à sífilis congênita, é importante o
diagnóstico precoce. É necessário testar todas as mulheres que
manifestarem o desejo de engravidar.
Um pré-natal qualificado pressupõe
como rotina exames para o diagnóstico da sífilis no primeiro trimestre,
de preferência já na primeira consulta.
***
BBC Brasil - As pessoas devem estar atentas a quais sintomas para suspeitar da doença? E como devem reagir nesse caso?
Dra Barcellos - O
primeiro sintoma, o cancro duro, no homem é mais visível. O problema
maior é seu desaparecimento espontâneo dando a impressão de que a cura
ocorreu sem tratamento. Nas mulheres, por questões anatômicas, não é
raro o cancro duro inicial passar desapercebido. O histórico de prática
sexual sem uso de preservativos deve ser investigado com seriedade em
consultas, seja na atenção básica, seja com especialistas da área de
ginecologia ou urologia. A existência de testes rápidos para sífilis
facilita muito a investigação.
***
BBC Brasil - Quais as principais causas da atual epidemia de sífilis?
Dra Barcellos - O
esgotamento do impacto das campanhas de uso de preservativos e da sua
ampla disponibilização parece ser um dos fatores do recrudescimento dos
casos de sífilis. Por outro lado, a implicação do desabastecimento de
penicilina afeta a evolução individual da doença e a possibilidade de
cura. A ideia é que muitos fatores estão implicados no presente
crescimento dos casos. Corroborando essa ideia vale ressaltar que o
crescimento da epidemia se iniciou antes de se tornar visível e
importante a falta do medicamento.
***
BBC Brasil - Por que a sífilis congênita é o maior problema agora?
Dra Barcellos - A
sífilis congênita, passada de mãe para filho, dependendo da intensidade
da carga bacteriana, pode resultar em aborto, natimorto ou óbito
neonatal. A doença também pode ficar disfarçada e causar o nascimento
prematuro de bebês com baixo peso, com outros sintomas como coriza mista
de sangue e ranho, sinais e sintomas ósseos, inchaço do fígado e do
baço, pneumonia, edemas, fissuras nos orifícios, entre outros males, que
podem resultar na morte da criança. Mas o tratamento, quando adequado e
precoce, oferece uma excelente resposta.
Os casos de sífilis congênita representam um indicador perverso das
lacunas ainda existentes no sistema de saúde vigente, incapaz de
identificar mulheres mais vulneráveis e oferecer-lhes acesso e qualidade
no cuidado pré-natal.
***
***
BBC Brasil - Como a doença se desenvolve?
Dra Barcellos - Na população em geral, a sífilis apresenta diferentes formas de manifestação, de acordo com o período de evolução da doença:
1) Sífilis Adquirida Recente:
Sífilis primária - apresenta lesão genital inicial denominada cancro
duro, uma espécie de ferida rígida, com inflamação periférica, que
costuma desaparecer espontaneamente em cerca de 4 semanas. O período de
incubação médio é de 21 dias;
Sífilis secundária - manifestações da disseminação da bactéria no
organismo, o que ocorre após 4 a 8 semanas do desaparecimento da
primeira ferida. Aparecem então lesões de cor rosada eruptiva, parecidas
com o sarampo, mas que não coçam. Essa é a manifestação mais precoce da
sífilis secundária. Outras lesões podem surgir posteriormente, como
manchas e feridas nas palmas das mãos e dos pés, na boca, inchaço dos
nódulos linfáticos e glândulas, queda de cabelo em formato de "clareira"
e condilomas planos; que são erupções na região genital-anal.
A Sífilis Latente Precoce é silenciosa, não apresenta manifestações clínicas e só a sorologia pode dar o diagnóstico.
2) Sífilis Adquirida Tardia:
A Sífilis Adquirida Tardia inclui a Sífilis Latente Tardia e ocorre se
os portadores da infecção não foram foram adequadamente tratados ou
diagnosticados.
O período que a doença permanece no organismo sem se
manifestar é variável.
As formas de apresentação desta fase da doença, também conhecida como
Sífilis Terciária, ocorrem em períodos que vão de 2 a 40 anos e são:
Sífilis tardia cutânea - lesões na pele em forma de gomos e nódulos
altamente destrutivas; Sífilis óssea; Sífilis cardiovascular - aortite
sifilítica, principalmente, determinando insuficiência cardíaca; Sífilis
do sistema nervoso.
***
BBC Brasil - Como é o tratamento?
Dra Barcellos - A
penicilina G é a droga preferencial para o tratamento da sífilis em
todos os estágios da doença. O tipo do antibiótico (benzatina ou
cristalina), a via (se por soro ou injeção) e a dosagem dependem das
manifestações clínicas e da presença ou não de co-infecção pelo HIV,
vírus da Aids.
A sífilis terciária necessita um período maior de
tratamento. A efetividade da penicilina no tratamento da sífilis está
muito bem estabelecida e baseada na experiência clínica de muitas
décadas, em estudos observacionais e em ensaios clínicos.
Os casos de sífilis congênita devem ser tratados com penicilina G
cristalina e o acompanhamento da criança também está condicionado à
adequação do tratamento da mãe. Portadores de alergia à penicilina podem
se beneficiar de dessensibilização controlado.
***
BBC Brasil - A falta de penicilina foi um fator preponderante?
|
Dra Barcellos - O
desabastecimento de penicilina, embora mais sentido no Brasil, em
função do aumento do número de casos e da maior necessidade de
medicamentos, não é uma exclusividade brasileira. Ele foi também sentido
nos Estados Unidos e Canadá. A gravidade é que o quadro de
desabastecimento não parece representar um problema pontual ou
temporário.
A penicilina benzatina é um produto barato, para populações na maioria
das vezes marginalizadas e que provavelmente confere um lucro baixo aos
fabricantes.
O desinteresse das empresas farmacêuticas na produção dessa
substância se alinha ao desinteresse na produção de pesquisa e de novas
drogas para outras doenças, também características de países em
desenvolvimento, conhecidas como doenças negligenciadas, na sua maioria
infecciosas.
***
BBC Brasil - Como é a situação da indústria farmacêutica no Brasil?
Dra Barcellos - No
Brasil, a indústria farmacêutica não realiza a síntese das substâncias,
ela adquire o princípio ativo e faz o produto final, dependendo, para
tanto, de fornecedores internacionais como a Índia e a China. Segundo a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Eurofarma, e outras
três empresas possuem o registro para produzir a penicilina benzatina.
Aparentemente, o que ocorreu foi uma redução de fornecedores mundiais da
penicilina nos últimos anos e a necessidade de buscar outras opções. O
Ministério da Saúde tem se manifestado explicando que o problema é
resultado da escassez mundial no suprimento de matéria-prima acrescido
de problemas pontuais da qualidade da penicilina produzida.
***
BBC
Brasil - Você acredita que poderia ter ocorrido uma asfixia intencional
da oferta de penicilina por parte das farmacêuticas para elevar o preço?
Dra Barcellos - Creio que os motivos são múltiplos e esse seria um deles a compor com as questões que já mencionei.
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Fonte:BBB Brasil
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