A entrevista do site Projeto Draft
com o surfista Cisco Araña. Idealizador da Escola Radical, voltada ao
ensino do esporte, o professor de educação física contou como a
experiência de aprender a surfar com um professor surdo o transformou, e
hoje, ensina crianças e adultos com deficiência e transformou sua
escola em um ambiente inclusivo.
“Espírito Aloha”. A filosofia que deriva do cumprimento afetivo, em
dialeto havaiano, valoriza a aceitação, a gratidão e a positividade.
É
ela que Cisco Araña usa para guiar sua vida. O surfista de 59 anos tem
fala calma, permeada por gírias e mensagens de união e serenidade.
Frutos, segundo ele, que a relação com o mar lhe rendeu.
“Eu tenho certeza que alguma coisa muito forte me levou ao surfe. Com ele, consigo ser uma pessoa melhor. Sou melhor pai, marido e homem.”
Nascido em Santos, no litoral paulista, Francisco Alfredo Alegre
Araña – ou simplesmente Cisco – teve contato muito cedo com o oceano e o
surfe, e os manteve sempre em sua vida.
Pioneiro do esporte no eixo
Rio-São Paulo, subiu ao pódio em praias pelo Brasil e pelo planeta
afora, da Califórnia à Indonésia. Mas sempre teve Santos como seu porto
seguro.
A primeira onda foi surfada, aos 9 anos, a duas quadras de casa,
no Posto 2. Treinou naquelas águas para sua competição de estreia, no
Guarujá.
“Eu tinha 13 anos, uns amigos me inscreveram, nós fomos até lá a pé. E eu ganhei.”
Naquele início dos anos 1970, o surfe era muito estigmatizado. “Era
época da ditadura militar. Quebravam as pranchas na nossa frente,
paravam nossos carros o tempo todo… Só porque éramos jovens e
cabeludos".
Cisco insistiu no esporte e ainda abriu uma fábrica de
pranchas e acessórios. Mas a ideia de viver do surfe parecia improvável.
Considerou ser médico, ortodontista e piloto de helicóptero. Por fim,
foi cursar educação física na Unimes (Universidade Metropolitana de
Santos), onde formou-se em 1982. Antes, no primeiro ano de faculdade,
fez sua estreia como professor dando aulas de natação.
Escola Radical
A aproximação com o meio acadêmico o ajudou a vencer barreiras e a
desbravar a cena do surfe.
“Venci campeonatos colegiais e universitários, me formei… Foram conquistas importantes porque deram a conotação de que surfistas também estudavam. Isso quebrava o rótulo de marginal.”
Assim, ele pôde colocar de pé um grande projeto: a Escola
Radical, primeira escola pública de surfe do país.
No início, a ideia
era oferecer outros esportes de aventura, mas a procura pelo surfe foi
tão intensa que o foco mudou. Cisco estima que desde a inauguração, em
1992, tenham passado por lá mais de 30 mil alunos.
A escola, na praia da Pompeia, é mantida pela prefeitura de Santos.
No seu quinto ano de existência, uma sequência de fatos acabou criando
um divisor de águas na carreira e na vida de Cisco.
Ao ser chamado para
ensinar um grupo de crianças surdas a pegar onda, ele ganhou
visibilidade na mídia local, sendo procurado por Valdemir Pereira Corrêa
(Val), que tem deficiência visual, mas estava decidido a surfar.
As
aulas para surdos haviam sido um desafio fácil para Cisco, que foi
treinado por um mestre com deficiência auditiva, Carlos Mudinho. A
cegueira, porém, era um grande obstáculo.
Val perdera a visão alguns anos antes, por conta de um erro médico
durante uma cirurgia de glaucoma. Para ajudá-lo, Cisco embarcou na
missão de elaborar uma prancha especial, adaptada para pessoas com
deficiência visual.
“Comecei a tentar entender o mundo dele. Precisava de uma experiência particular para poder criar.”
Foram dez anos para
viabilizar o projeto da prancha, que o próprio Cisco desenhou, com
frisos em alto relevo, guizos sinalizadores e bordas revestidas.
O
resultado compensou a espera: Val apareceu em um programa de TV
nacional. “Foram 90 milhões de pessoas assistindo ele surfar!”
A partir daí, apareceram alunos com outros tipos de deficiências e
limitações. E as pranchas adaptadas alcançaram um novo patamar:
instrumento multifuncional.
Com revestimentos móveis de espuma, Cisco e
os professores da Escola Radical alteram as pranchas conforme a
necessidade de cada aluno, desde crianças com paralisia cerebral a
idosos com limitações naturais da idade.
“O primeiro idoso foi o Euclides, que se matriculou aos 74 anos. Pensei: ele vai morrer na minha mão.”
Ao contrário: Euclides Camargo abriu espaço para que a terceira
idade se tornasse um dos grandes grupos de alunos. “Eles dão um show!”
Cisco já implementou projetos inclusivos na Espanha e no Uruguai.
Agora, está à frente de outra iniciativa em Santos: a criação de uma
nova escola pública de surfe, destinada apenas para pessoas com
deficiência.
“Meus troféus não valem nada perto do que a gente poder fazer por essas pessoas. Por meio do surfe, consigo fazer a vida melhor para mim e para o outro.”
O talento e a vontade de ajudar aqueles que
precisam alçaram o surfista engajado a personagem-título de um
documentário. Dirigido por Robinson Patrício, Cisco Araña – Longboard
Bossa Nova foi lançado de abril de 2016.
Dezoito pranchas
Em 1999, Cisco levou o surfe para o curso de educação física da
Universidade Santa Cecília com a disciplina de esportes radicais.
A
disciplina vingou e modalidades como surfe e stand up paddle seguem no
currículo da faculdade. Ele, porém, desistiu do ambiente acadêmico.
“Eu me afastei porque sou prático e a universidade é teórica.”
Tenta mergulhar todos os dias; quando a
rotina não permite, pelo menos molha o rosto na água salgada.
“Ver uma pessoa deslizar a onda e sair com aquele baita sorriso é o que acredito ser humanidade.”
O surfista divide seu tempo entre a Escola Radical, o projeto da nova
escola de surfe, sua escolinha particular (Cisco Araña Surf School) sua
vida com a mulher, Paula, e a filha, Nicole.
Quando ela nasceu, em um
dia 18 de abril, Cisco tinha parado de competir, mas fez a promessa de
voltar ao circuito, com 18 pranchas diferentes.
O resultado foi a
conquista de dois vices e 16 campeonatos, inclusive o título brasileiro e
o inédito Super Master de Longboard de 2009.
As pranchas estão
guardadas em casa, para Nicole, que aos 9 anos já surfa.
”Eu não forço, mas quero que ela veja que o mar é algo bom.”
Fonte: Projeto Draft / Vida Mais Livre
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