A atriz Rita Pokk, de 36 anos, ainda se emociona quando lembra o dia 
em que se casou, em 2003, com o também ator Ariel Goldenberg, de 35 
anos. 
Como ela é católica e ele é judeu, o casal optou por uma cerimônia
 ecumênica, em São Paulo, conduzida por um padre e um rabino.
— Foi o dia mais feliz da minha vida — ela conta. — Entrei de braço 
dado com meu pai. Ele ainda era vivo. Tudo estava lindo. O coração do 
Ariel estava quase saindo pela boca, de tanta alegria. Foi um grande 
sonho que meu marido e eu realizamos.
Rita e Ariel têm síndrome de Down e ficaram famosos depois de 
protagonizar o premiado filme Colegas, lançado em 2013. Estão juntos até
 hoje. 
O casamento, porém, foi só religioso. Eles celebraram a união num
 momento em que as leis brasileiras impediam que pessoas com algum tipo 
de deficiência intelectual se casassem livremente no civil.
Para que pudessem se casar no cartório, essas pessoas precisavam 
percorrer um longo e tortuoso caminho. 
Primeiro, os pais ou os 
responsáveis legais tinham que consentir. Depois, era preciso elaborar 
uma ação judicial pedindo que o juiz assinasse a liberação.
O processo se arrastava por meses, às vezes por mais de um ano. E não
 havia garantia de sucesso. Os juízes mais conservadores simplesmente 
vetavam casamentos desse tipo, ainda que a deficiência fosse leve.
Rita e Ariel preferiram não se desgastar com tantos obstáculos 
burocráticos. Mas tudo mudou. Se desejarem, eles agora poderão 
oficializar o casamento num cartório sem nenhum entrave. 
Em janeiro 
entrou em vigor o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146), que 
enterrou os impedimentos legais.
Como qualquer casal, bastará que os noivos apresentem os documentos, 
levem as testemunhas e assinem um papel em que atestam que a união se 
dará por livre e espontânea vontade. Nada mais do que isso.
O senador Paulo Paim (PT-RS) é o autor do projeto que deu origem ao 
Estatuto da Pessoa com Deficiência. 
Para a aprovação, foi decisiva a 
atuação do senador Romário (PSB-RJ), que foi relator da proposta. Para 
Romário, a lei corrige uma injustiça histórica:
— Os direitos sexuais e reprodutivos das pessoas com deficiência 
intelectual são os mesmos de qualquer cidadão. E também os direitos 
civis, entre os quais se inclui o casamento. Privá-las de exercer esses 
direitos só fortalece o preconceito da sociedade.
Número subestimado
De acordo com o IBGE, 0,8% da população brasileira tem algum tipo de 
deficiência intelectual. Em números absolutos, haveria 1,6 milhão de 
pessoas nessa situação — o equivalente a toda a população do Recife. 
Para especialistas, a cifra é subestimada, pois muitas famílias escondem
 a informação por vergonha ou então desconhecem que há alguém com 
deficiência intelectual em casa por falta de diagnóstico.
Até algum tempo atrás chamada de retardo mental — hoje esse termo é 
pejorativo —, a deficiência intelectual se origina em alguma alteração 
no funcionamento cerebral. 
Como resultado, a pessoa tem dificuldade para
 adquirir e processar o conhecimento, o que provoca alguma limitação na 
vida social.
Algumas pessoas com deficit de inteligência não conseguem ler e 
escrever ou lidar com dinheiro. Outras não percebem situações que as 
colocam em perigo. Outras não entendem que certos comportamentos só são 
permitidos dentro de casa, e não em público. 
Em muitos casos, elas até 
conseguem aprender tudo isso, mas com orientadores bastante dedicados e 
de forma bem lenta.
Ficção
São inúmeras as causas da deficiência cognitiva e elas surgem em 
algum momento do delicado período que vai do encontro do espermatozoide 
com o óvulo aos primeiros anos de vida.
Podem ser fatores genéticos (como os que levam à síndrome de Down e 
ao autismo), problemas na gravidez (como mães que passam por 
desnutrição, usam drogas ou contraem doenças como sífilis e zika), 
incidentes no parto (como os que levam à falta de oxigenação no cérebro 
do bebê), abandono do recém-nascido (como carência de alimentação e de 
estímulos) e acidentes na primeira infância (como envenenamento, 
afogamento, asfixia e quedas).
A ficção é rica em personagens com deficiência intelectual. Entre os 
mais célebres, estão Tonho da Lua, da novela Mulheres de Areia, e 
Forrest Gump, protagonista do filme homônimo.
O nível de comprometimento intelectual é muito variável. Enquanto uma
 parte tem um grau de deficiência muito profundo e não é capaz de levar 
uma vida autônoma, a outra parte consegue levar uma vida muito próxima 
do normal — estudam, trabalham, se casam e têm filhos.
Neste segundo grupo se encaixam Thiago Neves, de 31 anos, e Ione de 
Aquino, de 28 anos. Eles vivem numa casa pequena em Planaltina, cidade 
da periferia do Distrito Federal, onde criam uma filha de 6 anos sem 
nenhum tipo de deficiência e estão à espera do nascimento de mais uma 
menina.
Thiago e Ione têm dificuldade com as letras e os números. Graças a 
cursos profissionalizantes específicos para pessoas com deficiência 
intelectual oferecidos pela Apae de Brasília, cada um foi contratado por
 um supermercado. 
Eles fazem trabalhos descomplicados, como empacotar 
mercadorias e entregar compras na casa dos clientes.
— Num trabalho anterior, uma colega vivia me chamando de doida. Nós, 
que somos especiais, sofremos um bullying danado. É triste — lamenta 
Ione.
Eles vivem juntos há quase dez anos, mas só há poucos meses oficializaram o casamento no cartório. Thiago afirma:
— Com o casamento, alguma coisa dentro de mim mudou. Acho que fiquei 
mais maduro e responsável. Também me sinto mais parecido com as pessoas 
que não são especiais.
História cruel
O mundo sempre foi cruel com os deficientes. A Grécia antiga, por 
exemplo, valorizava o vigor físico. 
Por essa razão, os bebês que nasciam
 com algum tipo de deficiência eram abandonados ou sacrificados. 
Com a 
hegemonia do cristianismo na Idade Média, os europeus passaram a aceitar
 os deficientes como filhos de Deus. 
Eles, porém, não tinham o direito 
de viver em sociedade e eram enviados para instituições religiosas, onde
 eram mantidos enclausurados.
A Inquisição mandou muitas pessoas com deficiência intelectual para a
 fogueira. 
A dificuldade de interação social era por vezes tomada como 
atitude demoníaca. 
No século passado, os nazistas as levavam para campos
 de concentração, onde eram cobaias de violentos experimentos 
científicos, faziam trabalhos forçados ou eram simplesmente executadas. 
No Brasil, deficientes intelectuais eram internados em hospícios até o 
início dos anos 2000.
Segundo especialistas, quanto mais se estimulam essas pessoas desde a
 infância, maiores são as chances de se desenvolverem e se tornarem mais
 autônomas. 
Já há pessoas com síndrome de Down que se formam na 
universidade, o que antes era impensável. No passado, as famílias 
escondiam os filhos deficientes, e o isolamento minava qualquer 
possibilidade de crescimento.
De acordo com a psicóloga Ana Cláudia Bortolozzi Maia, da 
Universidade Estadual Paulista (Unesp), as famílias ainda têm se omitido
 na educação sexual dos filhos com deficiência. Muitas, diz ela, 
acreditam erroneamente que eles não têm sexualidade.
— Acham que o filho é incapaz e o tratam eternamente como criança, 
mesmo quando ele já é adolescente ou adulto. Eles são como todo mundo. A
 sexualidade está lá e vai se manifestar. A educação sexual adequada 
evita que engravidem, contraiam aids e sofram abuso e permite que tenham
 uma vida afetiva e sexual saudável.
Ana Cláudia trabalha há 18 anos com a sexualidade de pessoas com 
deficiência. 
De acordo com ela, a inclusão vem avançando a passos tão 
largos que os estudos acadêmicos, hoje muito focados nas famílias de 
pais sem deficiência que têm filhos deficientes, brevemente sofrerão uma
 reviravolta e passarão a se debruçar sobre os desafios dos pais com 
deficiência intelectual que têm filhos sem deficiência.
Prisão
Paulo Paim apresentou o projeto do Estatuto da Pessoa com Deficiência
 em 2000, quando era deputado. 
Preocupado com a falta de interesse pelo 
tema na Câmara, redigiu uma segunda proposta em 2003, quando chegou ao 
Senado. 
No caminho, as duas propostas acabaram se fundindo. Em 2015, a 
versão final foi aprovada pela Câmara e pelo Senado e sancionada pela 
Presidência da República. A lei entrou em vigor em janeiro de 2016.
Com o estatuto, tanto os deficientes intelectuais quanto os físicos —
 como surdos, cegos e cadeirantes — deixaram de ser cidadãos de segunda 
classe. 
A nova lei obriga a sociedade a remover os obstáculos e a 
oferecer a ajuda necessária para que tenham acesso pleno a todos os 
direitos básicos, como a educação, a saúde, o trabalho. 
Na questão 
educacional, o estatuto prevê que as escolas regulares estão obrigadas a
 aceitar alunos com deficiência.
Para que a nova lei não se torne letra morta, há a previsão de penas 
pesadas para quem desrespeita os direitos dos deficientes. A própria 
discriminação é punida com a prisão.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência fez mudanças numa série de leis,
 como a Consolidação das Leis do Trabalho, o Código de Trânsito 
Brasileiro e o Estatuto da Cidade. Alterações no Código Civil removeram 
os entraves ao casamento. 
O Código Civil agora considera incapaz a 
pessoa que, por algum motivo, não consegue expressar a própria vontade. 
Isso afeta quem tem deficiência intelectual grave e deixa livre quem 
sofre de um deficit cognitivo leve.
— Antes a lei já partia do pressuposto que o deficiente intelectual 
era incapaz. Agora presume que ele tem capacidade para decidir sobre a 
própria vida. Basta que ele diga que deseja se casar — afirma a 
promotora Aymara Borges, do Ministério Público do Distrito Federal.
A exigência de autorização judicial para o casamento tinha o objetivo
 de proteger o deficiente de pretendentes oportunistas, que estavam de 
olho apenas no patrimônio do futuro cônjuge. 
A decisão do juiz ainda é 
necessária quando um dos noivos não consegue manifestar sua vontade.
Os cartórios tiveram que se adaptar. Se antes estava nas mãos dos 
juízes, agora cabe aos oficiais dos cartórios a responsabilidade por 
liberar o casamento de pessoas com deficiência intelectual.
— É uma missão que nos exige sensibilidade — diz o presidente da 
Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo, Leonardo
 Munari de Lima.
— Temos que perceber no balcão se a pessoa com deficiência está ou 
não sendo coagida ao casamento. Quando temos dúvida, nós a chamamos para
 uma conversa reservada em outra sala para sentir se essa é de fato a 
vontade dela.
Primeira união
O que é mais comum são os casamentos entre duas pessoas com 
deficiência intelectual. Isso se explica pelo passado recente de 
segregação. Deficientes só conviviam com deficientes. 
A tendência é que,
 com o estatuto, isso mude. Frequentando todos os ambientes e 
participando mais da sociedade, os deficientes intelectuais passarão a 
se casar com pessoas sem deficiência.
Um casamento assim ocorreu em fevereiro no cartório da pequena cidade
 de Artur Nogueira (SP) — foi a primeira união oficializada no país 
graças à nova lei. 
O jardineiro José Francisco Dias, de 53 anos, se 
casou com a dona de casa Rosana de Lima Dias, de 44 anos. 
Quem tem 
deficiência é ela, vítima de uma paralisia cerebral quando era bebê. Ela
 fala e caminha com dificuldade. O casal está junto há 20 anos e tem um 
filho de 18.
— Quando eu era moça, minhas primas disseram que ninguém iria gostar 
de mim. Acabei acreditando que eu nunca iria me casar — ela conta.
José Francisco diz que não olhou apenas a deficiência dela:
— Quando a pedi em namoro, ela ficou assustada: “Mas você não vê como
 eu sou?”. Respondi que sim, mas queria conhecer o que ela tinha por 
dentro. 
Nestes 20 anos, ouvimos muitas risadas de deboche, mas a nossa 
união sempre foi maior do que o preconceito. Ela é uma ótima esposa e 
uma mãe exemplar. Não posso reclamar da vida.

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