11 de nov. de 2015

O enigma do Alzheimer

 
 
Tübingen, Alemanha, 1906. O neuropatologista alemão Alois Alzheimer (1864-1915) apresenta em um congresso científico uma enfermidade psíquica que envolvia oscilações nos estados de ânimo e considerável perda de memória. 
 
 
Cinco anos antes, ele mesmo havia diagnosticado esse quadro mórbido em uma mulher de 51 anos, Auguste D.


No “estabelecimento para enfermos mentais e epiléticos” de Frankfurt, essa paciente, em momentos de lucidez, dizia sentir-se “perdida”. 


Após sua morte, em 1906, em estado de alienação mental, Alzheimer examinou o cérebro dela e descobriu algumas formações compactas e outras filiformes. 


Intuiu que a causa das espetaculares alterações na personalidade residia naquelas formações. O médico entrou para a história da medicina, e a doença foi batizada com seu nome.

Sabemos hoje que a doença de Alzheimer não é uma enfermidade exótica, mas a causa mais comum de demência entre adultos. 


Cerca de 35 milhões de pacientes em todo o mundo sofrem dessa doença que aflige quase 40% dos octogenários e gera um enorme problema de saúde pública. 


Apesar dos avanços no diagnóstico e tratamento, a doença continua incurável mais de um século após sua descrição inicial.

No que diz respeito às possíveis causas, o primeiro indício é a notável contração observada no cérebro de pacientes mortos. Conforme o processo degenerativo avança, um grande número de neurônios é destruído em distintas regiões encefálicas. 


A destruição começa pelo lóbulo temporal, decisivo para as funções da memória. A memória explícita ou declarativa (que se refere à recordação de fatos ou acontecimentos), em oposição às habilidades motoras, é a mais prejudicada.

O hipocampo e uma zona adjacente, o “córtex entorrinal”, duas regiões cerebrais situadas no extremo inferior de ambos os lóbulos temporais, são as que sofrem maior dano ainda nas primeiras etapas da doença. 


Essas regiões são imprescindíveis para processar as informações, por isso concentração e capacidade de fixação tornam-se praticamente impossíveis quando ambas estão ausentes. 


Eis por que pessoas com a doença de Alzheimer vão ficando cada vez mais incapazes de realizar tarefas cotidianas, como vestir-se pela manhã ou manter uma conversa telefônica com um velho amigo.

 

No interior da célula



Pesquisadores do grupo de Paul Thompson, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, em colaboração com uma equipe da universidade australiana de Queensland, verificaram em tempo real esse processo devastador com o uso de técnicas de imageamento cerebral. 


Por meio de ressonância magnética é possível detectar um foco da enfermidade, que se alastra de maneira incessante pelo encéfalo, como se fosse um incêndio florestal de grandes proporções. 


A destruição aniquila sucessivamente os centros relativos à recordação, à linguagem e às emoções. São conservadas apenas as regiões encarregadas dos órgãos sensoriais, como visão e tato, e aquelas que controlam os movimentos. 


A cada ano os doentes perdem quase 5% da massa encefálica, cifra que se eleva para 10% nas regiões da memória. Adultos sadios perdem apenas 1% a cada ano.

As formações esféricas de proteína beta-amiloide e as fibras descritas por Alois Alzheimer têm importância fundamental, reconhecem os pesquisadores atuais. 


Trata-se de dois depósitos muito diferentes no tecido cerebral. As chamadas “placas” são compostas por um pequeno fragmento proteico denominado A-beta. 


As fibrilas, ao contrário, são principalmente uma variante modificada da proteína tau e se estendem sobretudo no interior dos neurônios. E não é só isso: elas são abundantes precisamente nas regiões que se degeneram de modo mais claro.

Por essa razão, o principal “suspeito” da morte neuronal são as fibrilas de Alzheimer. Admite-se que a causa resida na estrutura modificada da proteína tau dos pacientes. 


No cérebro saudável, a proteína tau normal estabiliza os neurônios, pois se une a um sistema tubular dinâmico (os microtúbulos). 


Trata-se de um componente do citoesqueleto (fibras proteicas do interior da célula que delimitam sua forma e movimento) que serve de bastidor para os processos de transporte rumo ao interior da célula. 


A proteína tau aparece sobretudo no prolongamento quase sempre mais largo do neurônio, o axônio, que conduz os sinais elétricos para os demais.


Se a proteína tau modificada não pode cumprir sua função protetora, as consequências previsíveis são catastróficas. 


Segundo a “hipótese da perda funcional”, a estrutura dos neurônios, de vários metros de extensão, não pode ser mantida: desaparecem as comunicações entre eles e a rede neuronal se desfaz. 


Essa hipótese pode ser testada utilizando-se um dos modelos mais comuns da investigação biomédica, o camundongo. 


A tese subjacente era de que a completa falta de proteína tau deveria acarretar consequências fatídicas para a rede neuronal do cérebro desse animal.


Em 1994, o grupo de Nobutaka Hirokawa, de Tóquio, gerou camundongos sem tau. Eles extraíram a informação genética da proteína desses animais, para que não pudessem fabricar proteína tau funcional. 


Mas, para surpresa dos pesquisadores, os camundongos se desenvolveram exatamente da mesma forma que os demais roedores não manipulados, e o sistema nervoso deles não se diferenciava do cérebro dos animais de controle. 


Assim, os neurônios desses camundongos pareciam não precisar da tau, e a hipótese da perda funcional foi afastada.


Proteína compacta



Que papel a misteriosa proteína desempenha na doença de Alzheimer? A alteração característica dessa proteína nos pacientes com Alzheimer prejudicaria o cérebro? 


O “aumento tóxico da função” poderia contribuir para a deterioração, algo ilustrado por patologias como a doença de Huntington, em que a pro-teína modificada destrói de maneira ativa os neurônios. 


O mesmo ocorre com as formas hereditárias da esclerose lateral amiotrófica (ELA), um processo degenerativo dos nervos motores associado à atrofia muscular.

Para testar tal possibilidade, vários grupos de pesquisadores dos Estados Unidos e da Bélgica introduziram, em 1999, a sequência do gene da proteína tau humana em camundongos, que, a partir daquele momento, passaram a fabricar grandes quantidades da proteína humana, além da própria. 


Os animais testados em laboratório apresentaram alterações degenerativas características dos axônios e também uma proteína tau compacta.

Mas, infelizmente, as células nervosas mais afetadas não correspondem às da doença de Alzheimer em seres humanos, e sim aos neurônios do tronco do encéfalo e da medula espinhal. 


Os animais tiveram outros sintomas, como debilidade muscular e paralisia, próprios da ELA. Seja como for, as descobertas demonstraram que com quantidades elevadas da proteína tau os neurônios eram destruídos, ainda que, no caso da doença de Alzheimer, outro mecanismo deva operar.

Os pesquisadores da empresa farmacêutica Sandoz, pertencente à Novartis, da Suíça, deram mais um passo quando, em 1995, geraram camundongos cujos neurônios continham quantidades muito menores da proteína tau humana. 


Os animais não revelaram grandes anomalias de comportamento nem alterações evidentes no cérebro ou fibrilas. Entretanto, a proteína tau estranha foi detectada em locais diferentes daqueles dos neurônios normais. 


No lugar do axônio, a proteína humana se multiplicava nas demais zonas de neurônios: pelos prolongamentos (dendritos) e pela rede celular. 


Ignoramos ainda qual é o significado dessa descoberta, mas também os pacientes com Alzheimer mostram fibrilas que se distribuem de preferência nessas zonas.

Outra diferença entre as duas proteínas tau era a alteração característica nas fibrilas humanas de Alzheimer. 


Nesse caso, a variação baseava-se no grau de fosforilação, isto é, de união posterior de grupos fosfato a determinados lugares com proteína tau. 


As células costumam se comportar assim para regular a função das proteínas.A proteína tau humana dos camundongos da empresa Sandoz estava muito mais fosforilada que a dos animais de outros laboratórios.


Por que os roedores não revelam as típicas fibrilas de Alzheimer? Talvez o processo de aglomeração ocorra lentamente. 


As fibrilas humanas aparecem, em geral, no sétimo decênio de vida ou mais tarde, ou seja, em uma idade que camundongos de laboratório não atingem. 


A suspeita apoia-se em estudos sobre alterações cerebrais ocorridas durante a evolução da doença de Alzheimer: segundo os estudos, a proteína tau se fosforila em um estágio precoce de formação das fibrilas, muito antes de começar a se aglomerar.

Seja como for, as fibrilas representam somente metade do enigma da doença de Alzheimer. Outro tipo de depósito encefálico (a placa amiloide) suscita várias perguntas. 


Essas placas não foram observadas apenas nas regiões encefálicas mais danificadas pela doença: foram vistas também no cérebro de muitas pessoas adultas que não sofriam da enfermidade e cujo tecido cerebral não apresentava degeneração superior à da média. 


Diante do fato, muitos pesquisadores acreditam que, no início da doença, a proteína A-beta é modificada. Ela desencadeia uma série de reações que culminam na degeneração catastrófica dos neurônios.

 

Camundongos transgênicos



Há indícios favoráveis para a “hipótese amiloide”. Algumas formas particularmente agressivas e precoces da doença de Alzheimer se acumulam em determinadas famílias. 


As causas genéticas comuns, porém, só justificam 5% de todos os casos da doença. 


A proteína precursora da A-beta de alguns desses pacientes sofre uma mutação genética; nos demais casos, o problema reside em outros genes, por exemplo nas presenilinas. 


É possível, entretanto, que todas as mutações ocorram, em última instância, por meio da formação da proteína A-beta.

Os pacientes apresentaram muitas placas amiloides. Pesquisadores confirmaram essa possibilidade com camundongos transgênicos que fabricavam a correspondente proteína A-beta com mutação: alguns animais mostraram grandes quantidades de placas que lembravam os casos da doença de -Alzheimer. 


Porém nenhum deles exibiu a degeneração neuronal tão clara como nos pacientes humanos. Para isso, é preciso a formação de fibrilas, algo que aconteceu nos ratos.

Eileen McGowan e sua equipe, da Clínica Mayo, nos Estados Unidos, cruzaram camundongos transgênicos (que produziam uma variante tau com tendência para a aglomeração) com animais que fabricavam mais placas amiloides. 


Obtiveram animais que não só apresentavam alguma quantidade de fibrilas de Alzheimer, mas também as depositavam nas mesmas regiões encefálicas dos pacientes com a doença. 


Assim, ao que parece, placas e fibrilas realizam uma interação fatídica. É provável que os depósitos amiloides modifiquem a proteína tau, de forma que esta adquira propriedades “fatais”, chegando a destruir os neurônios.

No futuro, poderemos criar modelos mais refinados para compreender melhor a doença de Alzheimer. Novas vias terapêuticas poderão então ser testadas. Medicamentos atuais, como os inibidores da acetilcolinesterase, tentam reforçar ao máximo e conservar as funções intelectuais do paciente. Assim, a doença pode ser detida alguns meses, mas não evitada nem revertida.

A maioria das novas estratégias dirige-se às placas amiloides que surgem em uma fase muito precoce da cascata de destruição celular. 


Nos laboratórios da Elan Pharmaceuticals foram imunizados, em 1999, camundongos transgênicos que produziam em excesso esses depósitos. Com isso, pôde ser evitada ou ao menos freada a formação das placas. 


No entanto, quando a empresa tentou transferir os resultados para a espécie humana e inoculou 360 pacientes com a doença de Alzheimer, muitos apresentaram encefalite, e o estudo precisou ser suspenso.

Estudar para prevenir



Foi realizada uma autópsia no primeiro desses pacientes. Ele tinha um número surpreendentemente baixo de placas amiloides no córtex cerebral, mas uma quantidade normal de fibrilas de Alzheimer, que supostamente causam morte neuronal direta.


O que cada um de nós pode fazer a fim de reduzir o risco de contrair a doença de Alzheimer? Primeiramente, evitar os fatores de risco. Contra alguns deles, como o envelhecimento, não se pode fazer muita coisa. 


Há, porém, estudos que indicam uma possibilidade mais viável de prevenção: quanto maior a escolaridade e a formação profissional, menor o risco de contrair a doença na velhice. 


Talvez neurônios mais ativos ofereçam mais resistência à enfermidade, ou a rede neuronal se associe com mais firmeza após uma formação intelectual ampla, opondo maior resistência à lesão. 


Mas essa formação é ineficaz quando a enfermidade já está instalada. E, de fato, as tentativas nesse sentido foram contraproducentes.

Existem, além disso, indícios de que os antioxidantes da alimentação reduzem o risco de contrair a doença. 


Algumas substâncias, como as vitaminas C e E, encontradas em frutas, legumes (brócolis) e chá (verde e preto), parecem diminuir a quantidade das espécies reativas de oxigênio que, aparentemente, intervêm de maneira decisiva nos processos normais de envelhecimento.

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Texto: Roland Brandt e Hartwig Hanser





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