Giovanna Maira era um bebê de um ano e dois meses quando o seu mundo
escureceu de vez.
A família se mudara para a casa da avó materna em
Osasco, na Grande São Paulo, pouco depois do nascimento da menina.
Os
pais já vinham notando alguma dificuldade de visão na filha, mas até
então acreditavam que ela fosse precisar de óculos.
“Minha mãe me apontava um amiguinho, e eu não conseguia achar. Ela falava ‘olha, Giovanna, um avião no céu!’, e eu olhava para o sol, não para o avião.”
A
gravidade do problema se tornou mais evidente quando as fotos da
festinha de um ano revelaram que o flash se refletia de modo estranho
nos olhos dela.
A avó levou a menina a um oftalmologista da rua. E o diagnóstico foi
duro: retinoblastoma, tumor maligno situado na retina que afeta quatro
em 1 milhão de crianças no mundo.
Encubado nos dois olhos, o câncer foi
descoberto tardiamente – um teste de fundo de olho logo após o
nascimento teria detectado a doença, mas esse exame não foi realizado.
Os médicos foram taxativos: se fosse operada, Giovanna poderia ganhar
uns seis meses de sobrevida; caso contrário, morreria em 15 dias.
O ano
era 1987. A primeira cirurgia (em 10 de dezembro, véspera do aniversário
do pai) não abalou muito a pequena. Mas, quando o segundo olho foi
operado, em 29 de dezembro, ela ficou amuada, parou de andar por um
tempo.Mas só por um tempo. Logo, logo, já estava andando, cantando,
batucando…
A musicalidade aflorou cedo. “Minha mãe conta que, por não
definir o que era noite e o que era dia, com dois aninhos vira e mexe eu
acordava de madrugada, saía da cama, entrava debaixo da pia onde
ficavam guardadas as frigideiras e panelas, e começava a brincar de
bateria!”
Os pais estimulavam a filha com tudo que é brinquedo sonoro:
pianinho, violãozinho, boneca que fala, bolinha com guizo.
O favorito
era um gravador com microfone. “Eu cantava o dia inteiro, contava
historinhas… Ali era o meu mundo.”
Até os 3 anos de idade, Giovanna enfrentou 21 sessões de quimioterapia.
Aí, então, os médicos deram a ela “uma espécie de aval para viver” (a
alta do Hospital do Câncer só veio mesmo aos 10 anos de idade).
Ainda
aos 3 anos, iniciou o estudo de piano e passou a frequentar a Laramara,
associação de assistência a pessoas com deficiência visual, onde
aprendeu braile e a se movimentar com a bengala.
Mas só foi se dar conta
de que era “diferente” lá pelos cinco anos, quando entrou no “prézinho”
e começou a sofrer com as boladas e pisões de alguns colegas.
“O ser humano é assim. O que ele não conhece, ele rechaça.”
A mãe a ensinou a
levantar a cabeça: vai lá e mostra que você pode fazer tudo o que eles
fazem.
Time dos intelectuais
E Giovanna cresceu destemida e endiabrada, driblando qualquer chance de
superproteção.
Pequena ainda, gostava de “tomar banho” no filtro de
barro ou atropelar o povo na fila do banco, pedalando seu triciclo na
calçada.
Maiorzinha, suas diversões eram subir na laje para soltar pipa
com a molecada e andar de bicicleta na rua!
“Eu não me acidentava! ‘Acidentava’ as pessoas!”, conta, rindo. Ao mesmo tempo, era ótima aluna. Na escola estadual em Osasco, a professora lia em voz alta enquanto escrevia na lousa e ela copiava tudo com a maquininha Perkins Brailler (na época, o aparelho tinha que ser importado da Inglaterra). No boletim, era só nota alta. “Lembro de uma vez na quarta série em que eu tirei 9.1 em matemática. Saí da escola e liguei para a minha mãe aos prantos.”
Aos 10 anos, a menina pediu para estudar canto. Ela trocara o piano
pelo teclado aos 5 anos e estava familiarizada com o palco, pois
participava dos recitais de fim de ano.
Foi matriculada numa escola de
música e, aos 12 anos, no Conservatório Villa-Lobos. Suas preferências
abrangiam de Laura Pausini e Marisa Monte à música negra norte-americana
(Aretha Franklin, Ray Charles, Stevie Wonder).
Formada em canto popular
aos 16 anos, encasquetou: iria estudar música na Universidade de São
Paulo. Descobriu que teria de fazer uma prova de aptidão antes do
vestibular, e que o ensino da USP era voltado para música erudita, para a
qual ela torcia o nariz.
Os pais, por sua vez, preferiam que a filha
escolhesse uma carreira com carteira assinada – mas não conseguiram
dissuadi-la.
Giovanna se preparou estudando canto lírico com o tenor Paulo Mandarino
e, aos 17 anos, entrou na USP, em 2004.
“Por ser a melhor universidade do país, você acha que terá uma infraestrutura fantástica, computadores acessíveis, material em braile, mas não é o que acontece.”
Para se
formar, ela precisou contar com a ajuda dos colegas e a boa-vontade de
alguns professores, que doavam parte do seu tempo para ajudá-la a copiar
partituras.
Nos fins de semana, despencava até a Zona Leste da capital
para estudar, por conta própria, musicografia braile.
Uma surpresa foi
se apaixonar pelo estilo erudito, na universidade:
“Abandonei minhas crenças antigas e fui jogar no time dos intelectuais da música”, brinca.
Nessa época, Giovanna vinha ganhando visibilidade como cantora e
tecladista do Ballet para Cegos Fernanda Bianchini, participando de
programas na TV.
Em 2005, cantou “The Music of the Night” (de O Fantasma
da Ópera) no Ginásio do Ibirapuera, em show do Criança Esperança.
Paralelamente, se apresentava em casamentos. Em 2006, ela pinçou uma
música mais recorrente no repertório – “Can You Feel the Love Tonight”,
de Elton John, da trilha de O Rei Leão – para competir em um concurso de
jovens talentos com deficiência promovido pela Very Special Arts.
O
vídeo agradou: com sua voz de soprano, Giovanna bateu concorrentes de 86
países, ganhou o concurso e, de quebra, uma viagem para Washington D.C.
e a chance de se apresentar no John F. Kennedy Center.
Tema da vitória
“Foi ousadia, eu poderia ter me dado mal ao cantar uma música que não era da minha língua”, diz Giovanna, hoje aos 29, sobre o vídeo que gravou para o concurso, dez anos atrás.
No palco do John F. Kennedy
Center, ela optou por uma miscelânea verde-amarela, com “Aquarela do
Brasil” e “Isto aqui, o que é?” (“Isto aqui, ô ô/É um pouquinho de
Brasil, iá iá…”).
No ano seguinte, regida por João Carlos Martins,
interpretou como solista a “Bachiana nº 5”, de Villa-Lobos, acompanhada
pela Orquestra Bachiana Jovem na abertura do Parapan de 2007, no
Maracanãzinho, no Rio de Janeiro.
A parceria já dura quase uma década –
em outubro de 2015, cantora, maestro e orquestra se apresentaram em uma
igreja na cidade paulista de Casa Branca.
Hoje, Giovanna tem dois álbuns lançados de forma independente (com
faixas no SoundCloud, o segundo, A Look Beyond, mescla o lírico e o pop,
“Nessun Dorma” e “Love of My Life”).
Tem também, no currículo,
apresentações para dois presidentes da República – duas para Lula e, no
Natal de 2013, uma para Dilma Rousseff, num evento para funcionários do
Palácio do Planalto.
Os casamentos e festas de debutantes lotam os fins
de semana, sem deixar espaço atualmente para baladas ou namorados. Com o
Grupo Musical Giovanna Maira, ela adapta o repertório ao gosto do
cliente.
“Já toquei de Metallica e Led Zeppelin ao ‘tema da vitória’ do
Ayrton Senna. Tã-tã-tã, tã-tã-tã…” Outra fonte de renda são os concertos
a bordo de cruzeiros marítimos, mais espaçados.
Irrequieta, Giovanna ataca em várias frentes simultâneas, botando em
prática, a toda hora, o ensinamento da mãe: “vai lá e mostra que você
pode fazer tudo o que eles fazem”.
Agora, ela se prepara para debutar
como escritora: com capa em braile, fotos com audiodescrição e versão em
ebook, Escolhi a Vida está previsto para ser lançado em abril e
trará um EP encartado.
O livro pretende motivar por meio de sua
história – algo que Giovanna já faz com as “palestras-shows” que
ministra em sedes de empresas.
Outra frente é o teatro: desde 2012, ela
atua como atriz no grupo Teatro Cego, que encena peças no escuro – um
meio da plateia compartilhar a perspectiva dos deficientes visuais.
Esse desejo de abrir os olhos do mundo para o ponto de vista das
pessoas com deficiência encorajou a cantora a buscar a política como via
de transformação.
Em 2012, Giovanna tentou se eleger vereadora por
Osasco, pelo Partido Verde. Não levou – mas cogita concorrer de novo em
2016, por outro partido.
“Eu tive muita sorte. Mas a maioria das pessoas com deficiência, e isso é confirmado estatisticamente, nasce em famílias pobres, pobres mesmo. Essas pessoas muitas vezes não saem de casa por não terem uma cadeira de rodas, uma sonda, por não terem uma bengala. Essas pessoas precisam de ajuda.”
Fonte: Projeto Draft / Vida Mais Livre
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