Em 1993, a jornalista Claudia Werneck lançou um livro-reportagem sobre Síndrome de Down
e recebeu de volta 3.000 cartas de famílias desesperadas atrás de
ajuda, algo que transformou profunda e definitivamente a percepção
daquela mulher sobre a necessidade de se falar em inclusão.
Hoje, o tema
está em toda parte. Há leis sobre acessibilidade, conselhos, regras,
mas o país continua discriminando, diz ela.
"Pessoas com deficiência não
são detalhes da natureza, mas parte intrínseca dessa natureza", afirma,
em entrevista à Época, diante do florido jardim de sua casa, na Barra
da Tijuca, no Rio.
Claudia é fundadora da Escola de Gente,
uma ONG que vem colecionando prêmios e reconhecimento internacionais ao
se dedicar a transformar políticas públicas em políticas públicas
inclusivas.
Seu mais recente e inovador projeto é o livro infantil
Sonhos do Dia, o primeiro do país publicado em nove formatos permitindo
sua leitura por todas as crianças.
Os nove formatos são resultado de uma combinação de linguagem e
tecnologia. Além do livro impresso, há o exemplar em alto relevo e
braile, a versão falada em CDs e DVDs, com e sem audiodescrição -
necessária para pessoas que não enxergam.
O livro também foi realizado
em CD no formato Daisy, que permite fazer anotações e sublinhar trechos.
Transformado em filme, a história infantil em forma de animação com
audiodescrição, legenda em português, além da trilha sonora, atende
diversas necessidades, cegos, surdos e analfabetos. O filme traduzido
para libras se torna acessível a quem não escuta nem lê em português.
O projeto inclui uma instalação interativa no Centro Cultural do Banco
do Brasil, do Rio, que será inaugurada dia 5 de junho, para que as
crianças possam experimentar - por cinco dias - as diversas formas de
ler e conhecer uma história.
Escritora com mais de 14 livros publicados,
e 250 mil exemplares vendidos, Claudia Werneck acredita no poder dos
sonhos e da comunicação desde que sonhou e conseguiu falar com
astronautas por carta, aos 12 anos. Abaixo, cenas dessa entrevista à
ÉPOCA.
ÉPOCA - Um livro em nove formatos é um projeto caro. Quanto tempo um sonho desse demora para virar realidade?
Claudia Werneck - Isso é o sonho de uma vida, da minha e do meu marido
que é meu editor e o único do país especializado em formatos acessíveis.
Estamos falando de um projeto que envolve técnica, paixão, uma
curiosidade enorme e muita força para romper barreiras. Nós pensamos em
fazer livros acessíveis desde 1993 e já estamos vislumbrando um novo
formato para o próximo livro: letra ampliada para crianças com baixa
visão. Pensamos também num livro com linguagem simples, o mais
complicado de todos porque não se fala muito nisso no Brasil. Eu vi na
Europa, sobretudo na Alemanha: livro com falas curtas para pessoas com
deficiência intelectual. Por que não? Cada formato exige uma
sensibilidade, uma inteligência e um percepção específicas. É um projeto
caro sim, não tem dinheiro para o folder, por exemplo. Falta dinheiro
pra tudo. O que queremos é um único formato que atenda todas as
crianças. Uma aventura que exige pesquisa porque uma coisa é
acessibilidade para adulto, outra para criança. O Brasil ainda não
percebe todo o valor da criança e não estou falando de governo, empresas
e mídia não. É a família, toda e qualquer família porque o olhar adulto
sobre a criança ainda é muito descontextualizado, não leva em conta
mesmo o que é direito da criança. Essa discussão sobre maioridade penal
toda errada é levar ao extremo um problema disfarçado no dia a dia com
amor e cuidado. A pessoa cuida, ama, leva para vacinar, mas não
reconhece o papel da criança.
***
ÉPOCA – A senhora está falando de uma falsa comunicação entre adultos e crianças?
Claudia – Só há comunicação quando as pessoas que se comunicam se
percebem como tendo o mesmo valor, e isso não acontece quando alguém com
deficiência conversa com alguém sem deficiência, por exemplo. É como se
a pessoa com deficiência fosse um ser humano de menor valor, porque lhe
faltaria algo, estaria eternamente em desvantagem. O mesmo acontece
entre adultos e crianças. A criança pode receber carinho de sua família
e, ao mesmo tempo, ser desrespeitada porque as pessoas a sua volta já
cresceram e ela está em fase de desenvolvimento, e isso se reflete na
comunicação intergeracional. A criança precisa, sim, da proteção
integral do adulto, mas traz em si um valor humano inteiro, pronto,
inquestionável. Para algumas pessoas é mais fácil desrespeitar uma
criança do que um adulto. Nunca parei para estudar muito isso, mas quer
um exemplo? Já reparou como as pessoas se sentem livres para tocar um
bebê quando acabam de conhecê-lo? Você não faz isso com um adulto.
Muitos argumentam que é carinho. Tá bem, mas você não tem afeto com
aquela criança que muitas vezes acabou de conhecer para ficar tocando no
corpo dela, mesmo que seja para fazer carinho. Tem homem que acha um
absurdo bater em mulher, mas bate na filha, que é uma mulher
pequena......não consigo entender isso. Concorda que é estranho? Por
isso, refletir sobre os Direitos da Criança na perspectiva da
acessibilidade e do direito à comunicação é um debate novo. É um tema
pouco conhecido, um arcabouço teórico que sequer está sistematizado no
universo dos Direitos das Crianças. Nesse livro, eu peço que o leitor
ajude a espalhar a notícia de que ele existe também para quem não vê. É
uma tentativa de responsabilizar uma criança pela outra. Se eu gero na
criança que enxerga o compromisso de avisar à criança que não enxerga
que o conteúdo do livro está em outras mídias, eu crio um vínculo de
proteção mútua. A acessibilidade não é apenas um instrumento para a
garantia de direitos, é um direito por si só. Um direito relacionado
com o direito à vida porque só está vivo no planeta hoje quem tem algum
nível de acessibilidade. Isolado, o ser humano morre em vários sentidos.
***
ÉPOCA – Propostas inclusivas são sempre bandeiras de pessoas idealistas
e teimosas o suficiente para levá-las adiante, o que é uma carga
difícil de carregar. Além do mais, são propostas que nunca despertam
interesse comercial. Como a senhora supera essas dificuldades?
Claudia – É muito difícil mesmo. Muito raro ter interesse das livrarias
ou das editoras num livro em sete formatos acessíveis. É muito caro,
tanto que esse livro, quando foi editado pela primeira vez em 2001, teve
apoio via Lei Rouanet, com patrocínio da White Martins. Essa versão
ampliada tem patrocínio de novo da White e do Criança Esperança, porque
os outros parceiros não entram com dinheiro. Esse é um trabalho que
precisa de parcerias institucionais fortes, ou não anda. Eu procuro
juntar todos em torno disso, mas não dá para fazer sem incentivo. Só que
a gente faz de qualquer jeito (ri).
***
ÉPOCA – O alto custo não torna um projeto de acessibilidade inacessível?
Claudia – Te pergunto 'quanto custa não discriminar?' Se eu faço um
livro só impresso em tinta, eu sei exatamente o preço da discriminação. O
X a mais do livro que não discrimina não é o "a mais", mas o certo
porque estamos no mundo do "X a menos". Quanto custa discriminar uma
pessoa surda num vídeo sobre doenças sexualmente transmissíveis? Custa o
preço de um vídeo executado sem um tradutor para libras. O mesmo vale
para um panfleto de interesse maior que não seja elaborado em braile.
Sou radical nesse ponto. Um livro impresso é um livro que discrimina. O
desafio é calcular quanto custa não discriminar. Você pensa que se eu
entrasse com esse projeto de um livro em sete formatos num edital eu
ganharia? Nunca. As pessoas fogem, não entendem a utilidade disso. A
minha organização, Escola de Gente, lida com ineditismo, gera emprego,
em todo o Brasil, mas precisa de parceiros que acreditem nessa força,
algo especial e muito difícil. Em meu livro "Ninguém mais vai ser
bonzinho", de 1997, eu falo que na sociedade inclusiva – uma proposta da
ONU de 1990 (Toda pessoa tem direito de contribuir com seu talento para
o bem comum) - seremos todos cúmplices, por mais diferentes que as
pessoas pareçam. Por isso estar no lugar do bonzinho me chateia. Esse
projeto nasceu do meu trabalho jornalístico, em cima de um tema de
interesse público, que trata do futuro do país, tão importante quanto
qualquer escândalo ou notícia sobre o Orçamento. O esforço é muito
grande mas há muita dificuldade para incluir esse tema no debate
corrente por isso sigo testando estratégias. A Tatá (Tatá Werneck,
atriz), minha filha, criou um grupo de teatro na escola em 2003. Eu e
meu marido damos oficina para formação de mídias acessíveis nas
favelas, inclusive com noções de audiodescrição para quem não enxerga.
Tento tudo que posso e sempre focada na juventude porque os jovens são
os melhores agentes de transformação embora meu público seja a criança.
Os jovens são pediatras que dão plantão, pedagogos recém-formados,
terão filhos e saberão educar melhor.
***
ÉPOCA – O que a senhora espera desse livro em nove formatos?
Claudia – Este livro avança no debate. Claro que a tendência não é
inviabilizar o livro. Quero que todos juntos pensem soluções. Existem
formatos totalmente desconhecidos do público como o formato DAISY. Um
folder no formato DAISY num CD não é caro. O problema é que, ao pensar
inclusão, você altera os tempos. Se tem uma foto, é preciso descrevê-la.
O tempo da comunicação da acessibilidade é incompatível com os tempos
atuais. Somos cada vez mais impulsionados para um tempo em que os mais
rápidos são melhores. Quero mostrar que todas as formas de se expressar
são legítimas. No entanto, não existe um encontro para esse intercâmbio
no Brasil. Acessibilidade não é para as pessoas com deficiência
acessarem o saber dos não-deficientes. É uma troca. As reflexões sobre
sustentabilidade e saídas para o planeta não darão certo porque ignoram
as perspectivas de uma população enorme que tem um saber que não entra
na busca dessas novas soluções. Ninguém está discutindo, por exemplo,
num sistema de prevenção de desastres com avisos sonoros, como educar a
população para avisar uma pessoa surda que o barulho está no ar. Se não
fizerem isso, não adianta. Acessibilidade envolve também mudança de
atitude e expansão de consciência, é o principal instrumento de garantia
de Direitos Humanos. Não é um favor aos deficientes. A sociedade
inclusiva é revolucionária porque não procura botar para dentro quem
está fora, ela reconhece todos como seres de igual valor. A sociedade
hoje se pauta por discriminação em todos os pontos de vista e não se dá
conta disso.
***
ÉPOCA – A senhora se sentiu discriminada por abraçar uma causa sem ser deficiente nem ter filhos deficientes?
Claudia – Totalmente. A primeira resistência veio da própria classe
jornalística que dizia que pena que você abandonou o Jornalismo. Quer
dizer que pode ter jornalista de esporte, de gastronomia mas não de
inclusão? E isso foi doído porque a minha sensação era “agora que eu
estou entendendo o que é ser jornalista”, agora que eu estou testando os
limites da minha profissão, dizem que não sou mais jornalista?
Jornalista também é agente da história. Em 1993, quando recebi 3.000
cartas por causa do meu primeiro livro, sobre Síndrome de Down,
envolvendo minha família toda. A primeira dor veio da minha classe.
Depois virei objeto estranho para todas as classes. Para os educadores,
eu era só uma jornalista. Para os médicos, eu também era só uma
jornalista. Eu vivi a exclusão de uma causa e hoje em dia a
discriminação é porque eu não sou deficiente. Muitos deficientes gostam
do lema "Nada sobre nós sem nós", mas eu posso ser a ponte e eu tenho o
direito de me interessar por qualquer causa. As pessoas tendem a achar
que a pessoa só tem credibilidade para lutar por uma causa se ela for a
causa. Acabou que hoje eu tenho um sobrinho com deficiência, falo disso
com naturalidade, mas eu não entrei nessa causa por causa do meu
sobrinho, ele é apenas mais uma prova de que a deficiência faz parte da
humanidade e eu quis contar isso para todo mundo, era um tema
desconhecido e mudou toda a nossa vida. A proposta de inclusão vem sendo
sempre adiada como se fosse algo voltado só para aquela família
azarada. Formar crianças com a mentalidade da acessibilidade é dar vez a
um novo modelo de sociedade com pessoas mais livres e mais
responsáveis.
Fonte: Revista Época / Vida Mais Livre
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