O movimento no apartamento de Priscilla Gaspar era um entra e sai sem
fim. Busca travessa, pega copos, traz salgadinhos, não se esquece também
dos mousses na geladeira.
Enquanto isso, Cezar de Oliveira, seu marido,
ajustava um telão improvisado no salão de festas do condomínio. Durante
o jogo entre Holanda e Chile, discutia com o cunhado sobre quem seria
um melhor adversário nas oitavas.
A confusão era parecida com a de muitas outras famílias nesta
segunda-feira (23), horas antes da partida do Brasil contra Camarões
pela Copa do Mundo.
A diferença era a provisória quietude: a comunicação era com a língua de sinais. Surdos, Priscilla e Cezar aproveitavam o aniversário de sua filha do meio para reunir familiares e amigos e assistir juntos ao jogo.
O silêncio logo acabaria. As crianças, empolgadas com buzinas e apitos,
chegaram fazendo festa com os primos. Sem sofrer com os sons
estridentes, brincavam de apitar na orelha alheia.
“Na mamãe não! Que a
mamãe escuta e machuca!”, gritou, entre sinais, Renata Gaspar, a
cunhada-intérprete de Priscilla, ao ser vítima da peça do filho mais
novo surdo profundo.
Com mais de 30 convidados, a festa talvez não ocorresse do mesmo modo
alguns anos atrás. A mãe da anfitriã, Silvia Sabanovaite, lembra que
quando era jovem havia mais preconceito e vergonha.
No meu tempo era vergonhoso mostrar a deficiência. Eu via que muitos
surdos se escondiam quando estavam conversando em Libras. Chegavam a
parar de falar quando alguém se aproximava e só voltavam a sinalizar
quando estavam sozinhos novamente”, afirma.
Desde então, muita coisa mudou. “Hoje é mais fácil porque tem leis que
favorecem os surdos. Na minha época era muito diferente, não tinha troca
com ouvintes. Eu tive sorte de ser oralizada”, diz Silvia.
Em 1991, a Lei das Cotas reservou vagas de emprego
para pessoas com deficiência. Em 2002, a Língua Brasileira de Sinais
(Libras) recebeu o status de “meio legal de comunicação” no país,
possibilitando que três anos depois fosse criada a lei que garante o
direito a intérprete em salas de aula e criação de escolas especiais
bilíngues.
Vida diferente
A mudança de visão sobre a comunidade surda é percebida na vida de
Priscilla. Seu pai foi aluno de escola que ensinava apenas Libras, já
Silvia frequentou escolas regulares que visavam “oralizar” os
deficientes, fazendo com que aprendessem a falar e a ler lábios.
Criada
com grande influência da avó materna, Priscilla acabou sendo educada
para a oralidade, mas aprendia sinais em casa.
“Eu fui matriculada em uma escola de ouvintes, mas cresci e comecei a
aprender sinais, que meu pai me ensinava escondido. A fonoaudióloga me
proibia de fazer sinais, mas como eu ia me comunicar com ele se não era
oralizado? Quando ela entendeu, aceitou”, afirma.
Em seu último ano na faculdade de pedagogia, a lei que garante
intérpretes em sala de aula entrou em vigor. Mesmo assim, ela optou pela
educação especial para as três filhas.
“A minha preocupação é que elas
encontrem a identidade delas, se sintam felizes e tenham contato com a
Libras”.
Natasha, que completou sete anos no dia da vitória do Brasil, já começa
a se interessar em ir para a fono.
“Eu não estou preocupada com a idade
em que elas aprendam a falar, tem um tempo certo.”
Já Reynaldo Falchi, irmão de Renata, a cunhada-intérprete, se preocupa
com a idade que a filha começará a falar. Filha de surdos, a pequena
Laura nasceu ouvinte.
Como as vozes dos dois são diferentes, ele teme
que a criança não aprenda tão bem quanto outras crianças da mesma idade.
Por isso, durante a semana a menina de um ano vai à escola, onde tem
contato com outros ouvintes e aos fins de semana, tem contato com os
sinais.
“Eu quero que ela seja bilinguista. Ela é pequena, mas já sabe
alguns sinais de banho, para comer...”, diz o pai orgulhoso.
Torcida
“Vai! Vai! Vai! Vai!”, gritavam todos ao ver Neymar se aproximando da
área e driblando o jogador camaronês.
Quando ele marcou o segundo gol
brasileiro, dando fim à angústia do empate, eram gritos e buzinas,
dançinhas e abraços. No calor da comemoração, não era fácil dizer quem
era ouvinte e quem não era.
Quem passasse pelo salão possivelmente nem pensaria como talvez há
alguns anos esse encontro não acontecesse. Provavelmente nem imaginaria
que se tratava de um grupo com mais de vinte surdos.
Contrariando
expectativas, a animação com o jogo não era silenciosa Não só pelas buzinas, mas os gritos exaltados
durante todo o jogo. Os palavrões também existiam mas, por alguma razão,
eles sim, eram silenciados para os não fluentes em língua de sinais.
Fonte: Época
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