Em uma casa no bairro Camaquã, na Zona Sul de Porto Alegre (RS),
Leandro Rosa de Oliveira acorda todos os dias cedo para levar a filha
Lívia, de quatro anos, à creche de carro.
Após voltar, põe roupas para
lavar na máquina, varre a casa e prepara o almoço.
A rotina parece
simples, não fosse um detalhe: o homem, agente penitenciário aposentado
por invalidez, não caminha há mais de quatro dos 32 anos de vida, devido
a um acidente de trânsito em 2011.
Sentado em sua cadeira de rodas na
sala de estar da residência, Leandro lembra a importância de realizar
tarefas normalmente para sua reabilitação.
"Peço para pessoas com deficiência não deixarem os
outros trazerem tudo nas mãos, porque é algo que facilita. É cômodo você
estar em casa e receber o almoço, o copo d’água nas mãos. E cada coisa
que você deixa fazerem, por mais simples que seja, o corpo deixa de se
movimentar e você freia sua reabilitação. Digo para o
pessoal não desistir e sempre buscar um recurso, buscar um profissional
da área, porque a vida não termina. A vida só termina para quem quer",
afirma.
Para 2015, o cadeirante tem mais uma meta: voltar a velejar. Ele já havia praticado a vela adaptada por meio de uma iniciativa gratuita realizada no Iate Clube Guaíba,
na Zona Sul de Porto Alegre.
"Eles têm fisioterapeutas à disposição e
uma equipe para locomover você e colocá-lo nas velas e depois saem
contigo, com colete salva-vidas e tudo", conta empolgado.
O acidente aconteceu em 2011, quando Leandro ainda trabalhava na Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe),
tendo como tarefa investigar possíveis delitos cometidos dentro de
prisões em todo o estado.
Ele viajava de carro com um colega na BR-290
em Alegrete, na Fronteira Oeste, quando o veículo, a 150 km/h, colidiu
com uma carreta.
O motorista morreu, e ele foi auxiliado por um
agricultor que passava pelo local e atendido às pressas por um médico
argentino que havia parado na estrada.
O condutor da carreta chegou a
ficar hospitalizado, mas se salvou. "Só sei disso porque ele relatou. Eu
não lembro, porque a pancada na cabeça me deu traumatismo e apagou umas
duas horas de memória", conta.
Após o acidente, Leandro ouviu dos médicos que não poderia mais
caminhar. Foi submetido a uma cirurgia "apenas para poder sentar". O
golpe só não foi mais duro que a reação da filha ao vê-lo no hospital.
"O que mais me doeu foi quando ela chegava ao hospital bebê, no colo dos
outros, olhava pra mim e não queria chegar perto. Eu estava com
aparelhos ligados ao meu corpo e ela não me reconhecia" , disse.
Após sair do hospital, Leandro foi encaminhado para o Centro de Reabilitação de Porto Alegre (Cerepal) e,
posteriormente, para a AACD, entidade que atende pessoas com
deficiência.
"Lá eu tive meus 11 meses de muita descoberta e evolução.
Comecei a ver que um cadeirante poderia seguir a vida normalmente",
contou.
Em meio à reabilitação, se separou da ex-mulher. Leandro, no entanto,
garante que o fim do relacionamento não foi consequência do acidente. "O
casamento já não ia bem mesmo", diz.
Da união que fora interrompida,
surgiu a grande motivação para seguir em frente. A guarda da pequena
Lívia é compartilhada, mas Leandro aproveita o tempo livre para tomar
conta da filha, que dorme ora com o pai, ora com a mãe.
Enquanto o pai supera as limitações para tomar conta da filha, a
pequena Lívia retribui ajudando em tarefas simples, desde recolher
prendedores de roupa que caem pelo chão até carregar o carrinho de
compras.
"E ai de mim se não deixar. Já me senti constrangido em
supermercados, pois ela pega o carrinho da minha mão e vai levando. O
pessoal fica me olhando e eu digo que, se eu tirar o carrinho dela,
arrumo briga. Ela vai empurrando até pesar. Quando pesa, me entrega. Ela
é um anjo".
A força de vontade é tanta que Leandro já contrariou uma projeção dos
médicos. Após ouvir que nunca se levantaria da cadeira de rodas, ele foi
procurado por uma especialista em reabilitação de pacientes com lesão
medular. Cerca de um ano depois de dar início ao tratamento, ele já
caminha com a ajuda de um andador.
"Ainda uso bastante a cadeira, pelo fato de cozinhar, pois se eu chego
perto do fogão com o andador, corro o risco de cair e me queimar.
Mas eu
saía sempre em meu carro adaptado com a cadeira. Hoje não, eu saio com o
andador, porque eu chego nas casas e consigo ir ao banheiro, e chegar a
outros cômodos, pois muitas casas são limitadas para cadeira. Hoje dou
valor por poder estar no andador", afirma.
Se a pequena Lívia faz com que Leandro se sinta motivado a dar
sequência à sua reabilitação, a fé em Deus é o principal alicerce ao
qual ele se apoia.
Em meio a tantas tarefas, não deixa de ler a Bíblia.
Uma vez por semana, participa de cultos e grupos de estudos religiosos.
A
crença no cristianismo já existia, mas se fortaleceu quando o ex-agente
penitenciário ainda estava no leito do hospital após o acidente e um
homem foi falar com ele, para pregar a religião evangélica.
Em meio à
conversa, Leandro descobriu que se tratava de um velho conhecido. Os
dois serviram juntos ao Exército em 2001 em Bagé, na Região da Campanha.
Para ele, não foi uma simples coincidência. "A partir dali eu decidi
entregar a minha vida para o Senhor".
Em meio a tantos afazeres, Leandro ainda encontra tempo para defender
sua classe. Ele explica que, ao se aposentar por invalidez devido a um
acidente de trabalho, obteve o direito de receber um salário equivalente
à maior remuneração que poderia alcançar se a carreira não tivesse sido
abreviada.
Como era da categoria A, a primeira após o funcionário
ingressar na Susepe, receberia o valor da categoria E, a última a ser
atingida.
Porém, uma lei que vigora desde maio de 2013 não prevê este benefício, o
que reduziu a remuneração de Leandro.
"Cada um dos poucos aposentados
por invalidez da Susepe ficou recebendo de acordo com a classe em que
estava. Eu sou o mais prejudicado, porque meu salário ficou como se eu
recém tivesse ingressado no estado", argumenta.
Mas se acomodar não é da índole de Leandro, que fez contato com o Sindicato dos Servidores Penitenciários do Rio Grande do Sul (Amapergs)
e com os demais aposentados na mesma situação que ele para tentar
reverter a situação.
Há duas semanas, pouco antes do recesso
parlamentar, esteve na Assembleia Legislativa para acompanhar uma sessão
que poderia terminar com a aprovação de uma emenda prevendo a volta do
benefício.
Apesar de não ter tido sucesso na empreitada, ouviu de
deputados governistas e oposicionistas – papéis que se inverterão a
partir da posse de José Ivo Sartori (PMDB) em janeiro – o compromisso
com sua causa.
Sendo nas galerias da Assembleia Legislativa, em um barco à vela, no
caminho da creche da filha ou na cozinha da própria casa, Leandro ensina
uma lição não apenas para os cadeirantes, mas para os seres humanos: é
preciso superar obstáculos para sentir-se vivo.
Fonte: G1
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