30 de jun. de 2014

Narrando com as mãos: surdos torcem pela Seleção com muito barulho e sinais

Foto da família assistindo ao jogo


O movimento no apartamento de Priscilla Gaspar era um entra e sai sem fim. Busca travessa, pega copos, traz salgadinhos, não se esquece também dos mousses na geladeira. 


Enquanto isso, Cezar de Oliveira, seu marido, ajustava um telão improvisado no salão de festas do condomínio. Durante o jogo entre Holanda e Chile, discutia com o cunhado sobre quem seria um melhor adversário nas oitavas.


A confusão era parecida com a de muitas outras famílias nesta segunda-feira (23), horas antes da partida do Brasil contra Camarões pela Copa do Mundo


A diferença era a provisória quietude: a comunicação era com a língua de sinais. Surdos, Priscilla e Cezar aproveitavam o aniversário de sua filha do meio para reunir familiares e amigos e assistir juntos ao jogo.


O silêncio logo acabaria. As crianças, empolgadas com buzinas e apitos, chegaram fazendo festa com os primos. Sem sofrer com os sons estridentes, brincavam de apitar na orelha alheia. 


“Na mamãe não! Que a mamãe escuta e machuca!”, gritou, entre sinais, Renata Gaspar, a cunhada-intérprete de Priscilla, ao ser vítima da peça do filho mais novo surdo profundo.


Com mais de 30 convidados, a festa talvez não ocorresse do mesmo modo alguns anos atrás. A mãe da anfitriã, Silvia Sabanovaite, lembra que quando era jovem havia mais preconceito e vergonha.


No meu tempo era vergonhoso mostrar a deficiência. Eu via que muitos surdos se escondiam quando estavam conversando em Libras. Chegavam a parar de falar quando alguém se aproximava  e só voltavam a sinalizar quando estavam sozinhos novamente”, afirma.


Desde então, muita coisa mudou. “Hoje é mais fácil porque tem leis que favorecem os surdos. Na minha época era muito diferente, não tinha troca com ouvintes. Eu tive sorte de ser oralizada”, diz Silvia.


Em 1991, a Lei das Cotas reservou vagas de emprego para pessoas com deficiência. Em 2002, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) recebeu o status de “meio legal de comunicação” no país, possibilitando que três anos depois fosse criada a lei que garante o direito a intérprete em salas de aula e criação de escolas especiais bilíngues.
 

Vida diferente
 

A mudança de visão sobre a comunidade surda é percebida na vida de Priscilla. Seu pai foi aluno de escola que ensinava apenas Libras, já Silvia frequentou escolas regulares que visavam “oralizar” os deficientes, fazendo com que aprendessem a falar e a ler lábios.  


Criada com grande influência da avó materna, Priscilla acabou sendo educada para a oralidade, mas aprendia sinais em casa.


“Eu fui matriculada em uma escola de ouvintes, mas cresci e comecei a aprender sinais, que meu pai me ensinava escondido. A fonoaudióloga me proibia de fazer sinais, mas como eu ia me comunicar com ele se não era oralizado? Quando ela entendeu, aceitou”, afirma.


Em seu último ano na faculdade de pedagogia, a lei que garante intérpretes em sala de aula entrou em vigor. Mesmo assim, ela optou pela educação especial para as três filhas.


 “A minha preocupação é que elas encontrem a identidade delas, se sintam felizes e tenham contato com a Libras”.


Natasha, que completou sete anos no dia da vitória do Brasil, já começa a se interessar em ir para a fono.


 “Eu não estou preocupada com a idade em que elas aprendam a falar, tem um tempo certo.”
Já Reynaldo Falchi, irmão de Renata, a cunhada-intérprete, se preocupa com a idade que a filha começará a falar. Filha de surdos, a pequena Laura nasceu ouvinte. 


Como as vozes dos dois são diferentes, ele teme que a criança não aprenda tão bem quanto outras crianças da mesma idade.


Por isso, durante a semana a menina de um ano vai à escola, onde tem contato com outros ouvintes e aos fins de semana, tem contato com os sinais. 


“Eu quero que ela seja bilinguista. Ela é pequena, mas já sabe alguns sinais de banho, para comer...”, diz o pai orgulhoso.
 

Torcida
 

“Vai! Vai! Vai! Vai!”, gritavam todos ao ver Neymar se aproximando da área e driblando o jogador camaronês. 


Quando ele marcou o segundo gol brasileiro, dando fim à angústia do empate, eram gritos e buzinas, dançinhas e abraços. No calor da comemoração, não era fácil dizer quem era ouvinte e quem não era.


Quem passasse pelo salão possivelmente nem pensaria como talvez há alguns anos esse encontro não acontecesse. Provavelmente nem imaginaria que se tratava de um grupo com mais de vinte surdos. 


Contrariando expectativas, a animação com o jogo não era silenciosa  Não só pelas buzinas, mas os gritos exaltados durante todo o jogo. Os palavrões também existiam mas, por alguma razão, eles sim, eram silenciados para os não fluentes em língua de sinais.


Fonte: Época

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