13 de mai. de 2014

Fundamental à locomoção de cegos, cão-guia é privilégio de poucos

Foto de um cão guia


Ao mesmo tempo companheiro e instrumento de locomoção, cão-guia ainda é privilégio de apenas algumas dezenas de cegos no Brasil. Escolas de treinamento são caras e não atendem à demanda.


Silvo de Alcântara, de 40 anos, é funcionário público, casado e pai de três filhos. Todos os dias, vai de casa para o trabalho, na zona central de Brasília


Usa transporte público, viaja, resolve problemas. Um cotidiano comum se  não fosse a retinose pigmentar, doença congênita que compromete a visão até que ela desapareça totalmente.


Aos 25 anos, Spencer Miranda também tem uma rotina agitada. Formado em Direito, estuda para prestar concursos públicos, trabalha num escritório de advocacia e, "quando o dinheiro dá", viaja a São Paulo para visitar a namorada. Com má formação na retina, Spencer nasceu sem a visão.


Em comum, além da deficiência visual, Silvo e Spencer têm a sorte de dispor de um cão-guia, animal cuidadosamente escolhido e treinado para mostrar o caminho aos cegos. 


Ao mesmo tempo companheiro e instrumento de locomoção, o cão-guia ainda é um privilégio de apenas algumas dezenas de cegos no país.


As poucas escolas que treinam e disponibilizam o cão de graça não dão conta da demanda. 


Um projeto criado no âmbito do programa federal de acessibilidade Viver Sem Limites promete criar sete centros de treinamento de cães-guia espalhados pelo país. 


O primeiro, no Instituto Federal Catarinense (IFC), em Camboriú, deve formar uma turma já em 2015.


A experiência de Silvo com o cão-guia começou há 12 anos, quando ainda era estudante de Ciências Contábeis na Universidade de Brasília (UnB). 


Numa palestra do Programa de Apoio às Pessoas com Necessidades Especiais da universidade, conheceu o Projeto Cão-Guia DF, que estava nos primeiros anos de atuação. 


"Fiz minha ficha de inscrição e tive a felicidade de ser selecionado para a primeira turma", lembra Silvo, que logo foi apresentado a Zircon, cão do primeiro grupo treinado no projeto.


Desde 2001, o Projeto Cão-Guia DF treinou 42 cães e atendeu 38 cegos isso porque quando um cão "se aposenta", outro é disponibilizado ao utilizador. Esse foi o caso de Silvo que, após a aposentadoria de Zircon, recebeu Naná, que o acompanha desde 2009.


"No início, fiquei meio ansioso. No Brasil era algo muito incipiente, no DF eram os primeiros cães. Foi uma experiência muito interessante", avalia Silvo. 


"É como se você andasse descalço num terreno abrasivo, se machucando todo, e, de repente, passasse a ter calçados novos e, em vez de andar descalço, andasse num carro de último modelo, de última geração, com todo o conforto que ele pode representar".


Spencer diz que o cão Happy é mais do que seus olhos. "Se é que isso é possível", brinca. 


"Estou com ele há sete anos. Chega um ponto em que você pensa e ele já sabe o que você quer, ou o contrário: às vezes não preciso dar comando verbal para ele. Às vezes mostro alguma coisa pra ele na guia [espécie de coleira especial], ou, quando ele está me guiando, ele mostra o caminho que quer seguir", explica.


"O cachorro abre muitas portas, tanto no sentido de independência técnica, quanto no sentido de socialização com as pessoas", conta Spencer.


Para Silvo, o cão é mais do que uma ajuda prática. "Ainda tem a questão de ser um excelente amigo, é um animal que se preocupa com a gente", explica. 


"E, além disso, tem o fator de integração social: as pessoas que veem um cego de bengala às vezes nem percebem, outros têm medo de se aproximar e perguntar se a pessoa quer auxílio. Com o cão-guia muitos já chegam e dão bom dia, e a gente faz muitas amizades", diz.



Apesar de a socialização ser facilitada com a presença do cão, nem sempre a dupla o cão e o cego é bem recebida em estabelecimentos comerciais e no transporte público. 


"No início, passávamos muitas tardes na delegacia por causa disso", lembra Lúcia Campos, coordenadora do Projeto Cão-Guia DF. Uma lei federal de 2005 determina que o cão guia deve ter o mesmo acesso que o seu utilizador em locais públicos.


Silvo avalia que a aceitação do cego e seu cão-guia já avançou bastante, mas foi preciso conscientização. "Passei a fazer um trabalho nas empresas e a gente resolveu o problema de acesso na parte de estabelecimentos comerciais e no transporte público", conta.


"Spencer também vê melhora, mas reconhece que ainda passa por situações difíceis. "Uma vez fui a Vitória com um amigo que morava lá. Levamos três cachorros. O motorista [do ônibus] não quis deixar e acabou fechando a porta na mão desse amigo. Fomos à delegacia fazer boletim de ocorrência", lembra Spencer.


Fabiano Pereira, instrutor da Escola de Cães-Guia Helen Keller, em Santa Catarina, alerta que a maior dificuldade é fazer com que os estabelecimentos também aceitem o instrutor acompanhado do cão-guia. 


"O cão precisa ser treinado nesses locais para que depois ele possa ajudar a pessoa cega", explica Pereira.


Apesar dos anos de funcionamento, as escolas de treinamento de cães-guias sofrem para manter as atividades. 


No Cão-Guia DF, por exemplo, o desafio é pagar as contas e seguir o trabalho com os 11 cães que estão em treinamento. 


Com a ajuda de voluntários, doações e parceiros que fornecem tratamento médico e ração para os animais , a coordenadora Campos leva o trabalho adiante.


Ela sempre gostou de cachorros e, depois de aposentada, decidiu dedicar mais tempo aos animais. 


Um dos treinadores dos seus cães falou do projeto e, logo em seguida, Campos recebeu o primeiro cão para fazer socialização, etapa em que o cachorro se acostuma com a presença humana constante em uma família hospedeira.


Ao ver o projeto perder força, em meados de 2006, Campos e um grupo de amigos formaram uma associação para continuar o trabalho. 


"Para cada cachorro que você põe para trabalhar, você assume uma responsabilidade enquanto ele estiver vivo, de manutenção, de assistência", diz.


No Rio de Janeiro, George Thomaz Harrison conduz o Projeto Cão Guia Brasil com ajuda também de alguns parceiros. 


"O Brasil é um país onde existe muita burocracia e dificuldade para se trabalhar em ação social. Não é muito forte na cultura do empresariado investir em ação de responsabilidade social, a não ser quando ele tem algum benefício fiscal e financeiro", lamenta.


Parte da dificuldade de ampliação do serviço vem da complexa formação de instrutores e do longo e caro processo de educação do cão. Cada um consome em torno de 35 mil reais até que esteja apto a formar uma dupla.


Em Brasília, os cinco instrutores responsáveis pelo treinamento são do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal. 


No início do projeto, em 2001, três militares receberam treinamento na fundação canadense MIRA, que custeou a compra dos primeiros cães reprodutores do projeto. Depois do treinamento inicial, outros bombeiros foram treinados para seguirem com o trabalho.


Em São Paulo, uma parceria entre o Sesi e a escola de treinamento do Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social (Iris) prioriza a inclusão de trabalhadores da indústria. Desde o início do trabalho, em junho de 2011, foram entregues nove cães.


"Nosso tipo de trabalho com o cão não é trabalho básico de adestramento. Procuramos cães que tenham um comportamento específico. O profissional tem que saber compreender o comportamento animal e humano", explica Pereira, único instrutor da Escola Helen Keller que participou de um treinamento de dois anos na Austrália. Além dele, outra profissional da Áustria o ajuda no trabalho com os animais.


Pereira é um dos responsáveis, por meio de parceria com o governo federal, pela implementação do primeiro dos cinco centros federais de treinamento de cães, dentro do programa Viver Sem Limites. No primeiro momento, a ideia é capacitar instrutores que já fazem parte do quadro dos institutos federais. 


O primeiro grupo, formado por um representante de cada região do país, está há um ano em treinamento na Escola Helen Keller. Depois, voltarão aos seus locais de origem e multiplicarão o conhecimento.


"Eles [os organizadores do programa] estão percebendo toda a dificuldade e as minúcias do trabalho com o dia a dia aqui com os servidores deles", diz Pereira, ao explicar o porquê da demora na abertura de vagas nos cursos para o público em geral.


De acordo com informações da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, responsável pelo projeto, o Centro Tecnológico de Formação de Instrutores e Treinadores de Cães-Guia de Camboriú, no IFC, já tem salas administrativas, alojamento com dez dormitórios, canil com capacidade para 45 cães, maternidade e uma clínica veterinária.


Os outros seis centros planejados devem ser instalados até 2015 em Alegre (ES), Urutaí (RS), Muzambinho (MG), Limoeiro do Norte (CE), Manaus (AM) e São Cristóvão (SE).


Fonte: O Povo

 

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