Linda, personagem de "Amor à Vida", novela das oito que acabou na última sexta-feira, 31, teve um final feliz.
Superou as dificuldades impostas por ser autista,
virou artista e casou com um advogado que a amava apesar de suas
limitações.
Mas a forma com que o autismo foi retratado na trama de
Walcyr Carrasco levantou questionamentos na comunidade científica.
As
características apresentadas por Linda não seriam consistentes com as de
alguém com Transtorno do Espectro Autista (TEA), o tratamento mostrado
também fica longe da realidade e o relacionamento com o advogado passa
não apenas por questões éticas como também limites legais.
Um texto que viralizou sobre o assunto é “E a moça autista da novela, heim?”, da pesquisadora do LAHMIEI, da Universidade Federal de São Carlos,
Ana Arantes.
Nele, Ana aborda os temas citados acima com o olhar da
psicologia e chega à conclusão que o caso de Linda é completamente
desconectado da realidade de um autista.
“As características
demonstradas pela Linda no desenvolvimento da personagem são confusas e
muitas vezes jamais se enquadrariam nas características de pessoas com
TEA”, escreve Ana.
Conversamos com a psicóloga para entender melhor essa questão. Confira a entrevista:
REVISTA GALILEU - Em seu texto, você fala que Linda não apresenta
características autistas. Quais são as características que classificam o
tipo de autismo que ela deveria ter, caso o personagem fosse
consistente, desde o início da novela?
É difícil falar sobre uma personagem de ficção, mas no início da novela
parecia que Linda tinha muitos comprometimentos cognitivos,
comportamentais e de socialização. Ela poderia até ser localizada como
autista típica dentro do espectro autista. Em um certo momento da novela
foi mostrado que o tratamento mais intensivo dela estava começando
naquele ponto, com o psicólogo e o fisioterapeuta, então entendíamos que
ela não tinha tido tratamento desde o início da infância. Nesses casos,
sabemos que a velocidade do desenvolvimento das habilidades de
comunicação e socialização é mais lenta, porque quanto mais cedo e mais
intensivo é o tratamento especializado, maiores as chances da criança se
desenvolver de maneira satisfatória.
E quais são as falhas do tratamento mostrado na novela?
Sempre me pareceu que o tratamento era mais centrado na mãe do que
propriamente na Linda. É claro que a família tem de ter e tem
participação importante nas estratégias desenvolvidas pelos
profissionais, mas não era esse o foco na novela. Esse é um erro grave e
é muito triste que ele tenha sido cometido.
Eu acho que isso ainda é
resquício de preconceitos errados difundidos por teorias psicológicas
ultrapassadas que depositavam a "culpa" do autismo de uma criança no
comportamento da mãe.
Uma dessas teorias que foi muito famosa por um
tempo é a da "mãe geladeira", que dizia que a criança havia se voltado
para dentro de si mesma para se proteger da mãe que era refratária ao
seu amor. Hoje em dia sabemos que o autismo é um transtorno complexo, de
base genética e comportamental e que ninguém é "culpado" por uma
criança autista.
'Hoje em dia sabemos que o autismo é um transtorno complexo, de base
genética e comportamental e que ninguém é "culpado" por uma criança
autista.'
O tratamento psicológico da Linda praticamente não foi mostrado, na
verdade. Algumas intervenções do psicólogo da novela eram sempre no
sentido de "ensinar" alguma habilidade para a menina, só que de maneira
muito fora da realidade de uma sessão de intervenção com autistas.
Me
lembro de uma cena em que o psicólogo mostrava um cartaz para Linda e
dizia que ela tinha que seguir aquelas instruções para arrumar a cama.
Veja, se uma criança tem sérias dificuldades de linguagem e comunicação,
sem nem falar do comprometimento cognitivo, como ela pode seguir regras
escritas ou mesmo desenhadas num cartaz?
Qual é o tratamento correto para o transtorno que Linda, em teoria, deveria possuir na trama?
O tratamento comprovadamente eficaz e recomendado para o TEA é o
baseado em ABA (Análise do Comportamento Aplicada, na sigla em inglês),
que consiste em um plano de intervenção intensiva e precoce, que tem
como objetivo ensinar para a criança, de maneira sistematizada, todas as
habilidades que ela precisa aprender para ter uma vida saudável, feliz e
produtiva.
São ensinadas habilidades de comunicação, de socialização,
habilidades acadêmicas e de vida diária (como se alimentar, higiene
pessoal, se vestir, por exemplo) e até mesmo preparação e treinamento
para o trabalho.
Parte-se daquilo que a criança já é capaz de fazer,
mesmo que seja muito incipiente, e vai-se construindo todo esse
repertório de comportamentos ao longo do desenvolvimento da criança até
que ela alcance autonomia - ou pelo menos, precise de menos suporte -
para ter uma vida normal.
Sobre o relacionamento de Linda com o advogado, você explica em
seu artigo que, dadas as características da própria personagem
apresentadas pelo programa, não seria correto que ela namorasse um
adulto. Basicamente, por que se trataria de abuso de incapaz. Casos como
esse são previstos por alguma lei?
Se a pessoa com TEA for considerada "legalmente incapaz”, pode ser
enquadrado no artigo 217 do Código Penal, que fala sobre crime sexual
contra incapaz.
'Linda, aparentemente, não demonstrava entendimento do que estava acontecendo no seu relacionamento com o advogado'
Acho que o que é importante é ressaltar que o autismo é um espectro:
dentro dele haverá uma imensidade de diferenças individuais nas
habilidades e no comprometimento social, comunicativo, comportamental e
cognitivo de cada autista.
Há várias pessoas com TEA que têm uma vida
relativamente autônoma e que precisam de pouco ou nenhum suporte
externo. Mas uma grande parte, infelizmente, precisará de apoio
profissional, social e da família por toda a vida.
Pessoas autistas
podem e devem ter relacionamento interpessoais, cada um dentro de suas
características individuais e de acordo com as habilidades que tem
naquele momento.
O problema que eu vejo no que foi mostrado na novela é que a personagem
Linda, aparentemente, não demonstrava entendimento do que estava
acontecendo no seu relacionamento com o advogado.
Na cena em que ela é
pedida em casamento, ela pergunta "o que é casamento?" e na cena do
casamento mesmo parece que ela está totalmente alheia ao que está
acontecendo.
Eu fico pensando, que tipo de decisão madura, consciente e
responsável essa menina pode ter tomado ao aceitar se casar? É uma
discussão importante, que o autor infelizmente escolheu não fazer, ou se
fez, foi de maneira superficial.
Qual foi a repercussão de seu artigo?
Ah! Tem sido muito recompensador, além de divertido. Eu escrevi aquele
artigo no meu blog, O Divã de Einstein, por demanda dos amigos que
estavam lotando minhas caixas de mensagem com perguntas sobre a
personagem da novela.
Achei que isso indicava que as pessoas tinham
muitas dúvidas sobre o assunto, e acho que acertei no momento e no
assunto do post, por isso teve tanta repercussão.
Os comentários que mais me emocionam e me preocupam são os das mães e
familiares de autistas, porque mostram como os profissionais de saúde e
educação, no Brasil, não estão preparados para atender a essa população.
É claro que sempre tem as pessoas que não entenderam o texto e os
famosos "mas essa é a sua opinião", desconsiderando completamente que o
artigo foi embasado cientificamente. Um tipo de comentário bem comum foi
"mas é só novela! é só ficção!", o que eu sempre rebato dizendo que a
novela tem um papel social importante na conscientização e na quebra de
preconceitos e estereótipos.
Mas muitos comentaristas também concordaram
que o assunto estava sendo tratado de maneira bem irresponsável pela
novela, e elogiaram o texto, o que é muito bacana!
Existem outros filmes ou livros em que os autistas também foram caracterizados de forma errônea?
Eu já vi em alguns sites que o personagem Forrest Gump, do filme com
mesmo nome, seria autista. Eu acho que não se enquadraria nas
características porque ele é muito comunicativo, socialmente habilidoso e
não parece apresentar problemas de comportamento.
Ele teria uma
deficiência cognitiva moderada e não autismo. Também é comum ler por aí
que o Sheldon da série The Big Bang Theory é autista. Além de já ter
sido desmentido na própria série - lembre que "my mother had me tested!"
- a personagem é mais uma caricatura de uma pessoa sem habilidades
sociais do que de um autista.
Que obras você recomendaria para alguém que quer entender melhor o comportamento autista?
Eu recomendo o livro Autismo: Não espere, aja logo! - Depoimento de um
Pai sobre os Sinais de Autismo, do Francisco Paiva Junior (que também é
editor da Revista Autismo). Nele, o autor mostra como foi a experiência
de descobrir que seu filho era autista e enfatiza a importância do
tratamento precoce e intensivo das crianças com TEA.
Fonte: Revista Galileu
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