Ela desceu do elevador com as mãos trêmulas e o coração aos pulos.
Tomou fôlego na portaria do prédio antes de entrar, de uma vez só, no
carro estacionado em frente.
Olhou para o homem atrás do volante pela
primeira vez na vida e, sem dizer coisa alguma, o beijou.
O primeiro encontro de Daiane e Rafael não teria nada de extraordinário
nesses tempos de amores incubados nas redes sociais.
Afinal, os dois se
conheceram pelo Facebook e combinaram em evitar com um beijo o
constrangimento das primeiras palavras no mundo real.
O extraordinário
mora num detalhe – a diferença incômoda para uns, encantadora para
outros: ela é Miss Bumbum e ele não move o corpo da cintura para baixo.
No último dia 24, o casal já contava oito meses de namoro quando uma
foto publicada no site de uma revista de celebridades causou polêmica na
internet. O texto registrava em tons glamourosos o acontecimento da
noite:
"Dai Macedo, vencedora do concurso Miss Bumbum 2013, comemorou
seu primeiro aniversário como rainha da preferência nacional muito bem
acompanhada. Com o namorado, Rafael Magalhães, ela usou um modelito
curtinho ao marcar presença na casa noturna Outlaws, em São Paulo, e
dançou muito na pista ao som do funk de MC Gui".
Nos comentários da
página, internautas manifestaram "opiniões" com o peculiar senso de
humor que se ampara no anonimato: "kkkkk, coitado do cara só fica no
desejo. ela é muito sacana", "ela tem muito fogo para se contentar com
posições limitadas rsrsrs", "cadeirante kkkk tem treta isso... esse cara
tem grana e chifre de rosca", "primeira vez que vejo um boi na cadeira
de rodas", "o antena de televisão sentadinho e ela se acabando nos
outros cômodos da casa", "essa menina é muito experta... puxa a capivara
dela antes, cuidado para ela não engravidar a pensão será maior".
O que esses despeitados piadistas não sabem é que, quando Daiane e
Rafael se conheceram, foi a diferença que a instigou. Ela conta (Rafael
não deu entrevista; diz que prefere não se expor mais) que recém havia
se mudado de sua Goiânia natal para São Paulo para defender a
candidatura ao Miss Bumbum Brasil.
Organizado há três anos pelo promoter
Cacau Oliver, o concurso promove uma votação na internet com candidatas
dos 27 Estados da Federação, de onde saem as 15 indicadas para a
finalíssima, decidida por jurados em um hotel de luxo na cidade.
A
goiana de 26 anos montou seu "comitê de campanha" no Facebook e adotou a
política de aceitar todos os convites de amizade que
marmanjos-eleitores lhe propusessem.
Um deles foi Rafael, que só tinha
fotos da cintura para cima em seu perfil. "Todo dia ele me escrevia no
inbox, a conversa era até boa, mas sempre terminava com ele me
convidando pra sair", lembra ela. "Eu pensava: ‘Que cara enxerido! Só
porque é bonito tá achando que vai me pegar?’."
Apenas na enésima
proposta ele enviou uma foto sentado na cadeira de rodas.
Daiane conta que levou um susto, mas ficou curiosa. "Mulher adora uma
história triste, né?" Aceitou. O resto você já sabe: ele foi buscá-la em
seu Chevrolet Captiva adaptado para cadeirantes. Beberam, dançaram e
terminaram a noite juntos.
"Muita gente não consegue imaginar que uma pessoa com deficiência tenha vida sexual", afirma o escritor e colunista do Estado, Marcelo Rubens Paiva,
cadeirante desde 1979, quando, aos 20 anos, fraturou a quinta vértebra
cervical ao mergulhar em um lago.
"A sociedade não consegue perceber
esse cara como alguém que pode ser atraente, ter bom papo, ser bom de
cama. Prefere vê-lo como doente, um coitadinho. Foi por isso que escrevi
Feliz Ano Velho (lançado em 1981 pela Editora Brasiliense e relançado
pela Objetiva). Para mostrar que um jovem nessas condições não deixa de
ter sonhos, ambições e desejos."
Marcelo chama a atenção para o fato de que alguém pode estar numa
cadeira de rodas pelas mais variadas razões – ser paraplégico, diabético
ou amputado, ter paralisia cerebral, ter sofrido derrame. Condições com
sequelas físicas totalmente distintas. "Pouca gente sabe, mas é só uma
minoria dos cadeirantes que não consegue ter ereção." E diz ter sentido
na pele o tipo de bullying que vitimou o namorado da Miss Bumbum:
"Certa
vez estava em um bar com a minha namorada e o colega de um amigo na
mesa a elogiou para mim. Então, ele disse: ‘Deus dá asas a quem não
precisa’. Na hora, eu queria esganar o cara, mas percebi que a frase
tinha saído tão automática que ele nem se deu conta".
Para a psicóloga e professora da Unesp de Bauru,
Ana Cláudia Bortolozzi, a sexualidade das pessoas com deficiência é
tabu por associar um tema difícil em si – o sexo – a padrões
preconcebidos de normalidade e complexos em relação ao corpo e ao
desempenho na cama.
"Esses comentários ocultam o fato de que pessoas que
não tenham deficiências também têm dificuldades ou limites sexuais ao
longo da vida", diz.
No estudo Inclusão e Sexualidade na Voz de Pessoas com Deficiência Física
(2011, Editora Juruá), a pesquisadora identifica nos relatos delas
dificuldades de autoestima, com a estética ou o desempenho, mas também
depoimentos que revelam
"pessoas determinadas, alegres, satisfeitas com a
vida, que fazem sexo, namoram e se casam".
A conclusão é que as
dificuldades enfrentadas por elas têm mais a ver com aspectos
psicológicos e sociais que com as limitações impostas pela deficiência.
Uma realidade retratada no filme As Sessões (2012), do diretor Ben
Lewin, que rendeu uma indicação ao Oscar para Helen Hunt no papel da
terapeuta que ajuda na iniciação sexual de um homem paralisado pela
poliomielite.
Já para o secretário nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal,
Antônio José Ferreira, importa ressaltar a gravidade dessas "ofensas
disfarçadas de ‘brincadeirinhas’ nas quais se reforçam estigmas e
preconceitos da forma mais vil e cruel".
Na opinião do secretário, que é
deficiente visual, o Brasil carece de uma lei que criminalize esse tipo
de agressão, embora as atuais políticas de cotas no serviço público e
na iniciativa privada, além de investimentos em acessibilidade e
educação, venham surtindo efeito.
Assim como o autor de Feliz Ano Velho, Rafael Magalhães perdeu os
movimentos em um acidente. Foi em 2005, quando sofreu uma lesão na
medula ao capotar o carro que dirigia sozinho e embriagado na volta de
uma balada. O advogado de 31 anos, festeiro e praticante de esportes,
tinha pouco mais de 20 à época – também como Marcelo.
Ainda assim, após a
reabilitação na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD),
se casou com sua namorada na ocasião e teve um filho, Lorenzo, hoje com
5 anos. Separado, tinha voltado a morar com os pais quando conheceu
Daiane, mas nunca abriu mão da autonomia com que circula e viaja
desacompanhado, inclusive para o exterior. Dos dois, é ele quem adora
sair à noite; ela é mais caseira.
Recentemente, foi encontrar a musa em Goiânia e conquistou também o
coração da família. É o xodó de Nilza, avó materna e incentivadora dos
talentos de Daiane desde menina.
"Daiane Macedo Pina, perna grossa e
canela fina", caçoava do nome completo e genética transbordante da neta.
Gordinha na escola, a partir da adolescência se jogou na malhação nas
horas vagas do trabalho no salão de estética da mãe, o Beleza Pura.
O
modesto estabelecimento alavancou as finanças da família ao oferecer um
"bronzeamento com marquinha" inédito na cidade.
"A gente colocava
esparadrapo em forma de biquíni nas clientes antes de elas deitarem
debaixo da lâmpada", ri Daiane, que com os dividendos pagou a faculdade
de administração (hoje trancada) e deu entrada em um apartamento de 60
m² no ascendente bairro Jardim Amazônia que está acabando de quitar.
Foi vó Nilza quem levantou o moral de Dai Macedo (na numerologia
escolhida pela representante de Goiás) quando ela voltou desanimada de
uma das viagens a São Paulo.
A moça tinha ouvido dizer que o Miss Bumbum
era comprado, e a ganhadora, aquela que tivesse a maior poupança – no
sentido bancário.
"Minha filha, você vai ganhar esse concurso. Pra Deus
nada é impossível", garantiu d. Nilza, com o conhecido fervor evangélico
dos Macedos na vizinhança.
Não deu outra. Se Deus ajudou, Daiane também
se mostrou toda poderosa, do alto de seu 1,75 m, 65 cm de cintura, 88
de busto e brasileiríssimos 106 cm de quadril.
No dia 13 de novembro de 2013, ela pôs a faixa de campeã e saiu para
comemorar com o namorado.
"Ele sempre me apoia no que eu faço. Por
incrível que pareça, a ciumenta da relação sou eu", confessa a miss, que
já atirou o celular de Rafael pela janela do quarto andar por causa do
assédio cibernético da concorrência.
"As meninas caem em cima dele,
morro de raiva." Ela, que se mudou definitivamente para a capital
paulista e faz curso de apresentação de TV no Senac, tem outros planos
para 2014. "Nunca fui tão feliz com alguém.
O Rafa é tão inteligente,
criativo. E, entre quatro paredes, me satisfaz totalmente. Às vezes ele
entra no boxe do chuveiro para tomar banho comigo, ficamos sentados no
chão, dando altas risadas." Até o fim do ano – apesar do show dos
invejosos – os dois pretendem se casar.
Foto: Leo Franco/AGNews
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